Crítica

Existem artistas que, depois de terem atingido o clímax, o ponto alto de suas carreiras, nunca mais conseguem voltar ao topo. Enquanto que outros são incansáveis, e estão sempre tentando inovar com criatividade e audácia. Esse é o caso do cineasta brasileiro Fernando Meirelles, que atinge um novo patamar com Ensaio sobre a Cegueira, seu mais recente trabalho. Diferente do filme que o colocou no ‘mapa’, o fantástico Cidade de Deus, da obra coral Domésticas ou mesmo o político O Jardineiro Fiel, desta vez ele vai ainda mais fundo no seu estudo sobre a personalidade humana, entregando ao público uma obra tão polêmica e repleta de significados quanto verdadeira e necessária.

Adaptação do romance homônimo de José Saramago, escritor português vencedor do Nobel de Literatura, Ensaio sobre a Cegueira era considerado por muitos – inclusive pelo próprio autor – ‘infilmável’. Mas Meirelles, apaixonado pelo livro desde quando o leu, há mais de dez anos, não deixou se abater pelo desafio, e foi adiante. Mais ou menos como aquela parábola do cara que “só soube ser impossível fazer tal coisa após tê-la realizado”. E ele se reuniu com alguns dos melhores profissionais do ramo para o cumprimento de sua missão. Assim como ele, Daniel Rezende (montador) e César Charlone (diretor de fotografia), todos indicados ao Oscar por Cidade de Deus, estão em pleno domínio de suas atividades, mostrando que o caminho para a consagração é longo, mas não diminui as ousadias de quem tem muito a oferecer. O trabalho de Charlone (que estreou há pouco como realizador com o belo O Banheiro do Papa) é, provavelmente, a maior marca de “Ensaio”, criando uma imagem leitosa que de adapta perfeitamente à sensação da “doença branca” proposta na trama.

E sobre o que trata o filme, então? Numa grande metrópole, impossível de ser identificada – as filmagens ocorreram em Montevidéu, no Uruguai, em São Paulo, aqui no Brasil, e em Toronto, no Canadá – uma série de pessoas começam, aparentemente do nada, a ficar cegas. Os médicos não encontram explicação, e como a epidemia parece ser contagiosa, todos os afetados são recolhidos e jogados numa grande instituição, longe de tudo e de todos. A única pessoa capaz de enxergar, que parece imune ao que está acontecendo com todos os demais, é a esposa de um oftalmologista. Sem cuidados nem orientação, os confinados passam a viver num mundo paralelo, onde a lei e a ordem são ditadas pelos mais fortes. Abusos, violências e desrespeitos acontecem em progressão geométrica, obrigando a todos a repensarem suas ações. Até o momento em que tudo muda drasticamente, quando percebe-se que aquele microcosmo se espalhou por toda a sociedade. E como reaprender a viver diante esta nova realidade? E, mais urgente ainda, qual o papel daquele que vê num mundo em que todos estão cegos?

À frente do elenco internacional está uma espetacular Julianne Moore, mostrando em pequenos gestos e olhares toda uma intensidade interior que poucos intérpretes são capazes. O desempenho dela lembra de imediato alguns dos seus melhores trabalhos, como Magnólia (1999) ou As Horas (2002), por exemplo. Ela é a condutora, aquela que serve de ligação entre o público e a história. Ao seu lado estão os americanos Mark Ruffalo (Zodíaco, 2007) e Danny Glover (Máquina Mortífera, 1987), o mexicano Gael Garcia Bernal (O Passado, 2007) e a brasileira Alice Braga (Eu Sou a Lenda, 2007), entre tantos outros. Cada um completamente submerso diante da diversa complexidade de desafios que estão enfrentando ao levar às telas um enredo tão repleto de simbolismos, referências e interpretações.

Ensaio sobre a Cegueira não é um filme de fácil acesso e simples compreensão. É uma obra difícil, tanto de se assistir quanto de se absorver. Durante a projeção há momentos que somos obrigados e virar o olhar para o lado, tamanha a crueldade que somos forçados a enfrentar. Assim como outros longas recentes, como O Nevoeiro ou Fim dos Tempos, estamos diante de uma visão bastante desiludida da humanidade, o que nos provoca tantos questionamentos quanto reflexões. E, apesar de tudo, os que completam esta jornada são recompensados com uma importante manifestação artística, não preocupada em buscar concordâncias, mas, muito pelo contrário, atrás de dúvidas e controvérsias. Meirelles é um artista, acima de tudo, e suas expressões buscam sempre alimentar aqueles atrás de enriquecimento e crescimento. E como não reconhecer algo tão provocador?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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