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Sinopse

Malik Khan é um oficial da Marinha norte-americana. Quando descobre informações privilegiadas de que um vírus alienígena se infiltrou na Terra, sendo transmitido pelas picadas de mosquitos, ele rapta os filhos pequenos, que vivem com a mãe, e embarca numa jornada de sobrevivência.

Crítica

Inicialmente, Encontros (2021) constitui uma ficção científica tradicional. Um vírus alienígena atinge a Terra, sofre uma série de mutações, infecta os mosquitos e, depois, as pessoas. O diretor Michael Pearce se diverte com a sequência de abertura, acompanhando passo a passo da contaminação microscópica através de cometas, insetos, tecido humano, órgãos. A abertura catastrófica nos prepara para uma jornada pós-apocalíptica guiada por um homem forte e patriota: Malik Khan (Riz Ahmed), oficial da Marinha norte-americana, recém-retornado de uma missão de guerra. É ele quem precisa garantir a segurança dos dois filhos pequenos, alertar as autoridades e fugir à praga dos insetos. Em questão de segundos, olhos de cidadãos atingidos começam a ficar marejados, dando sinais de invasores. Não há remédio nem antídoto, porque a doença permanece desconhecida da população. O herói se torna um lutador esclarecido contra um grupo de homens ignorantes, mal-educados e armados, que proporcionam um retrato amargo da América profunda. Ao que tudo indica, o espectador se encontra diante de uma história a respeito dos perigos de se ignorar a ciência — algo relevante em tempo de fake news e mensagens antivacinas.

No entanto, a narrativa logo sofre guinadas importantes. A primeira delas decorre de um estranhamento: por que Malik seria o único a par desta ameaça interplanetária? De onde vieram as informações privilegiadas, e por que o oficial se protege dos mosquitos num instante, mas passeia com os filhos ao ar livre na cena seguinte? O questionamento da verossimilhança poderia representar a parte mais suculenta desta aventura, por testar a adesão do espectador: até que ponto estamos dispostos a ficar do lado deste homem, contra todas as vozes ao redor? Começam a surgir dúvidas de que Malik seja psicótico, sofrendo de stress pós-traumático. Infelizmente, a transformação do pai protetor a possível sequestrador louco ocorre com uma facilidade e uma rapidez espantosas — estas, sim, difíceis de acreditar. Os investigadores tiram conclusões abruptas a respeito do estado de espírito do protagonista, disparam alertas de busca, emitem frases de efeito poderosas sobre o perigo do sujeito que, até então, parecia simpático aos olhos do espectador. “Ele é uma bomba relógio! Malik vai executar aquelas crianças!”. O que permitiu chegar a tais conclusões? A avaliação poderia decorrer da islamofobia, algo que o roteiro jamais aproveita de fato. 

Afinal, o longa-metragem constitui um exercício voluntário de manipulação das expectativas do espectador. Pearce não deseja investir numa ficção científica propriamente dita, nem numa jornada distópica, apenas fazer menção a elas. Ele engana o público de propósito, ilustrando a contaminação para depois sugerir que tudo possa decorrer da alucinação de um homem doente. Ao invés de um esclarecido, ele seria apenas um lunático, exemplo dessas figuras folclóricas que disseminam descobertas absurdas nas mídias — vide certo presidente afirmando que a vacina contra a Covid-19 provoca AIDS. Ora, as reviravoltas levantam problemas de discurso: por qual ponto de vista se narrava a infecção inicial? Como Malik possui uma consciência tão clara de seus problemas mentais (“Eu não estou bem da cabeça”, ele confessa aos filhos), visto que nenhuma hesitação tinha aparecido até então? De que maneira surgiram as imagens impressas de seres microscópicos na pasta? Por que cessam as alucinações com a multiplicação de mosquitos? O autor brinca com a alternância brutal de registro, da ficção científica ao thriller psicológico, sem pensar que a nova realidade invalida inúmeros elementos oferecidos até então. Privilegia-se o prazer da surpresa à coerência narrativa — conforme avança, diversos símbolos perdem o sentido.

Os melhores momentos de Encontros se encontram fora dos quiproquós envolvendo alienígenas ou delírios. Quando se dedica à viagem de um pai com os filhos pequenos, o filme encontra seu ritmo, as melhores interações, além de uma bem-vinda contemplação. Os dois atores infantis, Lucian-River Chauhan e Aditya Geddada, são excelentes, proporcionando uma necessária leveza ao conjunto. Caso a obra se levasse ainda mais a sério, pareceria ridícula e exporia suas falhas de raciocínio. No entanto, a road trip de pai e filhos permite que o desespero do personagem esteja ligado não apenas à saúde dos meninos, mas também à necessidade de provar seu valor e convencer o resto do mundo de suas teorias. Malik tenta impor ao mundo moderno um ideal de resistência baseado na coragem acima das leis, no ímpeto de proteção da família acima da integridade física alheia. Em outras palavras, a narrativa nos oferece um sujeito forte e destemido, típico do cinema de ação dos anos 1980 e 1990, para insinuar que ele seja impossível, artificial, maluco — um simulacro de herói, ao invés de um herói de fato. Um dos objetos de estudo se encontra nos códigos masculinos e conservadores do cinema industrial. Aqui, o imaginário do homem invencível está condenado ao fracasso.

É uma pena que o potente debate metalinguístico se perca na necessidade de elaborar um espetáculo consensual. À medida que se converte num filme policial comum, com viaturas e armas empunhadas, o projeto reproduz todos aqueles códigos que parecia criticar, afastando a possibilidade de interpretação de uma obra analítica e distanciada. Restam um sem-número de cenas fracas e acessórias, em especial aquelas relacionadas a Hattie (Octavia Spencer), uma agente de condicional desprovida de vida própria, e que não aparenta ter mais prisioneiros a acompanhar, além do protagonista. O possível faroeste entre sujeitos belicosos e fanáticos, envolvendo os filhos de um homem idoso assassinado, também acena à possibilidade de um olhar crítico ao porte indiscriminado de armas. Entretanto, o filme tampouco mergulha nesta perspectiva. Encontros parte de um universo de reavaliações morais e subversões de expectativa, mas nunca determina qual discurso pretende veicular. O que Pearce teria a dizer sobre as guerras, o stress pós-traumático, a noção de distopia nos dias de hoje, o medo do outro, a islamofobia? O roteiro demonstra medo de incomodar quem quer que seja ao adotar um posicionamento político claro. Ora, sem uma discussão social a partir deste episódio, resta somente a viagem suicida de um tipo que acredita em monstros invisíveis.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Daniel Oliveira
4
MÉDIA
4.5

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