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Sinopse

A partir de depoimentos de agentes penitenciários, retrata-se a falência do sistema carcerário no Brasil, marcado por superlotação dos presídios, ameaças à integridade física dos carcereiros, tortura aos presos e surgimento de facções criminosas. Especialistas como Drauzio Varella ajudam a compreender os perigos que o encarceramento massivo provoca à sociedade.

Crítica

É curioso que, enquanto Carcereiros: O Filme (2019) busca retratar o universo prisional pelo prisma de um empolgante mundo de ação, o documentário que serviu de base à esta ficção se oponha aos fetiches do universo carcerário. A porta de entrada para o filme de Fernando Grostein Andrade, Pedro Bial e Cláudia Calabri é o preconceito habitual contra os carcereiros, ou seja, a impressão de que são justiceiros encarregados de abater bandidos que ameacem a ordem na cadeia. “A nossa grande arma é a palavra”, lembra um dos personagens, antes de frisar que os agentes sequer possuem armas, e nunca são encorajados a adotar atitudes violentas que possam levar a represálias. Para quem espera do retrato de penitenciárias uma fascinante rotina de lutas e rebeliões, o documentário oferece o olhar humano aos detentos, e o olhar profissional aos agentes carcerários.

O aspecto mais louvável do projeto é sua profunda ambição sociopolítica. A partir da figura inicial dos carcereiros, investigam-se as relações de poder dentro da prisão, a pressão psicológica sofrida pelos agentes, os maus-tratos e a tortura por parte dos policiais, o papel da ditadura no incentivo às agressões, o surgimento das facções, a superlotação, o custo das cadeias, a taxa de reincidência do crime, a dificuldade de reinserção na sociedade após o cumprimento de pena etc. Fala-se de presos perigosos e dos pequenos traficantes, das mulheres grávidas na prisão e da dificuldade dos carcereiros em conversar sobre o dia a dia com os familiares após o fim do expediente. Em apenas 72 minutos, o filme navega de maneira fluida entre esses temas, articulados através de um raciocínio lógico e farto em pesquisas.

Ao mesmo tempo, existe uma preocupação notável na filmagem dos depoimentos com carcereiros. Eles são registrados dentro de suas casas, de maneira despojada e com poucos recursos de luz, como se a intenção fosse colocá-los na posição mais confortável, em situação em que sintam protegidos para narrar episódios envolvendo ameaça de morte e decapitações. O evidente cuidado com os entrevistados se contrasta com o caráter explícito da representação da violência, utilizada como prova de que os traumas narrados pelos agentes decorrem de uma situação real, não exagerada para finalidade dramática. Por meio desta curiosa rede envolvendo os indivíduos e o Estado, Encarcerados traça o panorama de um sistema falido, algo apresentado tanto por Drauzio Varella quanto pelo ministro Luís Roberto Barroso, num consenso que entretanto não suscitou transformações reais por parte dos últimos governos.

Embora não se transforme num panfleto político apontando culpados nem vendendo soluções fáceis, o discurso traça importante paralelo com os tempos presentes ao citar o coronel Brilhante Ustra, torturador exaltado pelo presidente Jair Bolsonaro. A mentalidade punitiva, ao invés de reformadora, do novo presidente é condenada, de maneira acessível e popular, pelo filme que busca dialogar com o público amplo. Talvez esta seja a única ousadia do filme de feitura clássica, organizado através dos talking heads e das imagens de arquivo: ele dirige um discurso progressista e reflexivo a um público amplo, tentando furar a bolha da polarização ideológica através do convite ao debate. É difícil saber se conquistará algum êxito neste diálogo, porém o cinema sequer poderia ser responsabilizado por educar seu público. Qualquer ponderação que produza em tempos de discursos de ódio será muito bem-vinda.

Por fim, Encarcerados desveste a prisão de suas idealizações – tanto a de criminosos bárbaros que merecem morrer como a de pobres vítimas das circunstâncias. O olhar para o sistema como um todo permite inserir o comportamento criminoso num mecanismo amplo, enquanto as imagens chocantes de cadáveres mutilados se afastam muito da plasticidade esperada do justiçamento heroico. A barbárie é representada de modo voluntariamente asqueroso, sem qualquer adesão por parte dos diretores. Humaniza-se todas as peças dentro de um mecanismo ironicamente desumano, condenado a se repetir e se intensificar se não houver alguma transformação sensível na mentalidade do povo e de seus governantes. Muito mais do que provocar pelo teor das imagens, o documentário provoca pela reflexão.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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