Crítica


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Sinopse

A vida dos irmãos Ioane e Pili sofre uma reviravolta quando, em certo verão, eles encontram um diário que aponta para um tesouro perdido. São colocados numa trilha de aventuras que os reconecta com suas raízes havaianas.

Crítica

Em Busca de ‘Ohana (2021) se sobressai dentro do gênero da aventura infantojuvenil por uma série de razões. Primeiro, ele compreende que, antes de lançar heróis ao perigo, é preciso explicar quem são e o que o percurso significaria para cada um. A garantia de que “descobrirão a si mesmo eventualmente” se torna frágil demais à construção dos personagens. Por isso, o roteiro de Christina Strain toma o tempo de delimitar, ainda que rapidamente, a personalidade de meia dúzia de adultos e adolescentes até lançar o primeiro convite à jornada. A composição de Pili (Kea Peahu) enquanto uma garota amante das trilhas, das emoções fortes e dotada de aparência andrógina jamais é problematizada pelos familiares ou próximos. O aspecto nerd do amigo Casper (Owen Vaccaro) tampouco é ridicularizado. O texto parte da existência de temperamentos diferentes e conflitos claros (a busca pelo tesouro, a tentativa de encontrar dinheiro rapidamente), sem restringir os colegas e familiares às suas características principais. Em outras palavras, estes jovens pertencem a tribos, porém se afastam do estereótipo – razão pela qual Pili e o irmão Ioane (Alex Aiono) satirizam a própria condição de nova-iorquinos estressados.

Segundo, a direção propõe um equilíbrio preciso entre tons: não existem piadas fáceis de caráter físico ou escatológico, nem instantes de perseguições ou fugas “puras”. A caça ao tesouro sempre carrega tanto o humor quanto o suspense e o senso de urgência, simultaneamente. As sequências longas (refletindo na duração total de mais de duas horas) permitem que, durante uma única cena, os personagens comecem com medo, depois enfrentem um desafio perigoso, terminem rindo e improvisando um musical. É difícil misturar estes elementos de maneira orgânica, porém Jude Wang o concretiza sem deixar a impressão de costurar filmes diferentes. No clímax, o roteiro conquista a proeza de fazer com que todos os personagens participem à conquista do objetivo, seja de perto ou à distância, através de recursos simbólicos. O valor da família, defendido com força pelo projeto, ultrapassa os conceitos de sacrifício pelo outro e de amor incondicional, propondo o compartilhamento democrático de responsabilidades – razão pela qual uma importante decisão será tomada em torno da mesa de casa, com adultos e crianças. Tamanho equilíbrio é prejudicado por duas cenas sentimentais envolvendo pai idoso e filha adulta, quando se exagera na câmera lenta. No entanto, os instantes curtos são incapazes de prejudicar a narrativa como um todo.

Quando se aproxima de uma versão pré-adolescente de Indiana Jones, Em Busca de ‘Ohana esclarece suas referências nos diálogos e passa a brincar com a metalinguagem. Estes trechos são particularmente divertidos, porque acenam aos conhecimentos dos adultos. A piada recorrente com Keanu Reeves gera bons momentos, e os flashbacks imaginados pela garota, em tom de paródia, desmistificam a pretensa seriedade da jornada. A visão de piratas seríssimos agindo como patetas e pronunciando termos infantis diverte tanto pela composição dos atores adultos quanto pela noção de que Pili dirige sua própria história, assumindo a mise en scène em sua versão dos fatos. Wang subverte expectativas: são as meninas que precisam salvar os garotos, e os mais novos que encorajam os mais velhos a enfrentarem seus traumas. Enquanto isso, animais criados explicitamente para serem sidekicks divertidos são deixados de lado (o gato obeso) e o potencial da magia se converte numa única cena de função discreta – talvez por limitações de produção. O filme resgata a aventura à moda antiga, onde é preciso amarrar cordas, mergulhar, saltar, escalar e encontrar saídas dentro de uma montanha. Nenhuma tecnologia avançada ajuda os heróis.

No papel principal, Kea Peahu constitui um verdadeiro achado. A atriz sem experiência prévia demonstra grata naturalidade diante das câmeras, tanto no trabalho de corpo quanto de voz. Ela se sai igualmente bem nos diálogos dramáticos, humorísticos e irônicos. A indústria não deve tardar a explorar o talento da garota em novas produções, sobretudo em tempos de demanda crescente por diversidade étnica e racial. O resto do elenco possui prestações homogêneas, sem se sobressaírem uns aos outros. Ora, o escopo da produção nem sempre ajuda: os garotos são cobertos por um trabalho de maquiagem amador, além de efeitos especiais pouco verossímeis para o padrão Netflix (vide a aranha e os lagartos). No entanto, o filme assume o cenário de faz de conta, espécie de escape room em meio à natureza, onde as crianças jamais correm perigo real. A picada de uma aranha perigosíssima não deixa marca na mão em seguida, e uma intensa briga entre pai e filha se resolve durante uma conversa rápida. Wang evita estender dores e perigos, o que também vale para os sucessos: quando se encontra o objeto procurado a mais de 35 minutos da conclusão, o espectador pode antecipar que ainda haverá inúmeras reviravoltas à frente. Preocupada com a agilidade, a narrativa prefere seguir em frente ao invés de se atardar nas alegrias e nas tristezas.

Apesar da construção eficaz, o projeto jamais dissipa a aparência de uma propaganda turística do Havaí. O Estado norte-americano fornece uma caprichosa autoimagem: este seria um lugar orgulhoso de suas raízes, porém aberto a todas as culturas; um paraíso de paisagens magníficas, ainda que repleto de animais selvagens para os fãs de adrenalina; um espaço dotado de boa infraestrutura para morar e visitar, porém totalmente afastado do ritmo opressor de Nova York. As cores saturadas e os planos aéreos sugerem um mundo de cartão postal, como se o Havaí fosse um grande resort ocupado por vizinhos gentis (caso das visitas no hospital). Pelo menos, os criadores representam as diversas etnias de maneira respeitosa (vide as falas em espanhol e as menções a Porto Rico). O filme funciona muito bem dentro de suas modestas proporções, ultrapassando o maniqueísmo e os estereótipos mais comuns do universo infantil criado por adultos – onde cabe notar a ausência de vilões. Em Busca de ‘Ohana se assemelha às melhores produções da televisão aberta, programadas para o período da tarde, visando o entretenimento infantil quando as crianças chegam da escola. Curiosamente, este segmento (assim como as comédias românticas e tantos outros) se encontra hoje no streaming. Novos tempos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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