Crítica


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Sinopse

Eduardo é um adolescente tímido, às vésperas de prestar o vestibular. Numa festa, ele conhece Mônica, mulher mais velha que termina o estudo de medicina enquanto se dedica às artes plásticas. Tudo parece separar os dois que, no entanto, se encontram e se apaixonam. E quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração?

Crítica

"Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar / Ficou deitado e viu que horas eram / Enquanto Mônica tomava um conhaque / No outro canto da cidade / Como eles disseram”. Os versos no começo de Eduardo e Mônica, a canção do Legião Urbana, servem de descrição quase literal à abertura de Eduardo e Mônica (2020), o filme. Os criadores estabelecem diversas referências desde o princípio, seja para agradar o espectador sedento por representações literais da letra, seja para se livrar o quanto antes de tal responsabilidade. Nas primeiras sequências, a tela se divide, apresentando as metades do casal central em lados diferentes da tela, simultaneamente separados e unidos pela montagem — no cinema, eles se conhecem via edição, antes mesmo de se encontrarem pessoalmente. Ao contrário das adaptações literárias, onde um romance extenso oferece desafios em termos de concisão e reescritura para se adequar ao tempo e à narrativa do audiovisual, aqui o roteirista Matheus Souza parte de mínimos elementos obrigatórios, numa espécie de desafio criativo: Eduardo precisa ter dezesseis anos, gostar de novela, jogar futebol de botão com o avô. Mônica tem que cursar medicina, falar alemão, gostar de Bauhaus, Van Gogh, Mutantes, Caetano e Rimbaud. Pronto. O resto, façam como quiserem.

O diretor René Sampaio enxerga nesta premissa o material perfeito para uma comédia romântica (ou drama romântico) a respeito da atração entre opostos. Nada parecia unir um adolescente tão imaturo a uma mulher de espírito livre. No entanto, o amor ocorre de formas misteriosas e supera barreiras, sustenta o discurso. O otimismo impregna cada cena rumo ao final esperado — os obstáculos servem a testar a permanência do casal, fortalecendo-o. Abraça-se uma idealização em chave mais romântica do que nas composições de fundo amargo concebidas por Renato Russo. Ressalvas à parte, o longa-metragem acredita nas pessoas, ou seja, na capacidade de convivência entre as diferenças, sem a imposição de mudanças drásticas para tal acordo. Mônica seguirá sendo ousada e imprevisível; Eduardo preserva seu caráter cartesiano e reservado. O avô Bira (Otávio Augusto), um militar da reserva, saudoso da ditadura que se terminava, continua punitivista (sabemos em quem ele votaria hoje, caso vivesse no Brasil do século XXI), e o amigo Inácio (Victor Lamoglia) será feliz quando compreender quem realmente é. Diversas comédias românticas ensinam que os extremos devem abrir concessões para se encontrar em algum espaço intermediário. O projeto brasileiro acredita que devam ficar juntos, ainda que fiéis às suas ideologias. Não há muitas receitas para o sucesso desta convivência, exceto pela profunda vontade de fazer com que ela funcione. Parte essencial da narrativa depende da fé.

Os méritos desta empreitada devem bastante à escolha do elenco. Apesar de terem idades superiores àquelas de seus personagens (por que é tão difícil ao cinema brasileiro que adolescentes interpretem a si próprios nas telas?), Gabriel Leone e Alice Braga estão excelentes nos papéis principais. Ele investe num sorriso tímido, de olhos fechados e gestos desengonçados, transmitindo a mistura de desejo e medo de conhecer tudo o que a vida adulta lhe reserva. Ela resolve uma quantidade impressionante de variações pelo olhar, os sorrisos e a dilatação dos silêncios. As perguntas não respondidas no encontro inicial com Eduardo, a evolução do comportamento durante o jantar de Natal e a descontração nas festas comprovam o talento absurdo de Alice Braga. É um prazer encontrar um filme capaz de entregar material tão vasto aos atores, que navegam entre contradições e circunstâncias improváveis. Embora a condição de médica-artista de Mônica seja mal resolvida (as exposições surgem por milagre, sem processo de criação, e as interrupções nos atendimentos médicos jamais se justificam), a atriz elabora uma mulher coerente e verossímil. Ela nunca confunde progressismo com a caricatura do hippie, nem do irresponsável. Da mesma maneira, seu companheiro de cena foge à armadilha de converter Eduardo num adolescente ingênuo, deslumbrado com o mundo. O elenco e a direção possuem tanto mérito por aquilo que concretizam quanto pelos vícios que conseguem evitar. 

A direção busca se equilibrar entre um bem-vindo naturalismo e a idealização crescente. A escolha de mergulhar na década de 1980, ao invés de atualizar a trama aos anos 2020, exige esforços de direção de arte cumpridos sem dificuldade pela equipe. Tecnicamente, a produção revela uma estrutura onde os setores caminham em plena sintonia, sem cabeças de equipe buscando chamar atenção excessiva ao seu trabalho. A direção parte de sequências criativas — vide a conversa em alemão sobre a parede em blocos, iluminada por holofotes cênicos, e a sequência do garoto indo ao banheiro sem portas dentro de uma casa-galpão. Há espaço para estranhamento no terço inicial (“Eu não vou dar pra você”, avisa rispidamente a jovem), algo que se domestica, até adquirir traços convencionais. Conforme a trama avança, multiplicam-se os close-ups, as cenas ao pôr do sol, as interações em contraluz, os incontáveis flares, as conversas em plano e contraplano, a trilha sonora de violinos tristes. Caso tivesse uns vinte minutos a mais, a experiência atingiria o melodrama folhetinesco, mas consegue escapar a tempo. Enquanto isso, Sampaio mergulha os protagonistas melancólicos em cenários inesperadamente vazios: praias, ônibus, estradas, píers, parques. O mundo existe para representar o amor dos dois. Felizmente, o acabamento polido e profissional dissipa a impressão um pouco desgastada dos clichês.

Eduardo & Mônica constitui uma ótima adaptação musical, por diversos motivos. Primeiro, por conseguir lidar de maneira equilibrada com a canção original e a memória do Legião Urbana, sem converter o resultado num filme-homenagem servil. Segundo, por preservar as pontes com a contemporaneidade, facilitando a leitura do espectador — uma exposição de artes plásticas possui um significado específico no Brasil de Bolsonaro. Em paralelo, a imagem dos amigos nus na cachoeira, a memória das vilas militares e o fantasma do comunismo refletem este país com um grande passado pela frente. Terceiro, o longa-metragem cumpre um importante papel  na produção audiovisual brasileira ao investir no “filme do meio”, capaz de agradar crítica e público. Trata-se de uma obra onde a comédia não implica em piadas insistentes e ofensivas, nem o drama provém de vilões ou doenças fatais, enquanto o apuro estético jamais se traduz em hermetismo. Na fase delicada de retomada às salas de cinema, os filmes têm enfrentado dificuldade de atrair o público, seduzido pelos prazeres convencionais dos blockbusters de super-heróis, de sequências e franquias. Por isso, a presença de uma obra agradável, competente e inteligente como esta nos permite acreditar que o circuito realmente terá alternativas aos gostos não-hegemônicos — caso o circuito exibidor abra espaço ao produto nacional, é claro. Para além da ilustração das letras de uma música, o filme nos traz a representação de um Brasil dividido entre a herança da ditadura e a perspectiva de progresso social. Este é exatamente o país ao qual precisamos nos confrontar agora.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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