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Sinopse

Edna vive numa terra arruinada, construída sobre massacres. Ela carrega as marcas de uma guerra que nunca acabou. Entre o real e o imaginário, é revelada a força e a resiliência dessa mulher que faz jus à sua linhagem.

Crítica

Edna (2021) narra uma história de violência. A protagonista foi perseguida, presa e torturada por homens que pretendiam fazê-la sair de sua casa e liberar as terras. Embora vitoriosa em sua resistência, ela continua a viver na miséria. A voz cansada repete diversas vezes: “Um dia, vou-me embora daqui”. No entanto, o documentário recusa qualquer imagem de sangue, agressões, confronto com carrascos, recortes de jornal ou dados para representar o histórico de abusos. O conflito é visto exclusivamente pelos olhos da protagonista, por sua voz e percepção de mundo. Edna fala de si mesma, mas também discorre sobre a trajetória de migrantes, a fome, a impossibilidade de partir. Ela transmite tanto cansaço quanto orgulho, numa persistência decorrente do misto de convicção e inércia. A direção prefere criar esteticamente o ambiente opressor, através de uma fotografia bastante contrastada, sons altíssimos de grilos, motores de caminhões e a luz forte dos faróis atravessando a rodovia no meio da noite. A violência se converte em poesia, não para atenuá-la ou desculpá-la, mas para revelar a maneira como o cinema de criação pode estabelecer, dentro do registro documental, um diálogo metafórico com o real.

Eryk Rocha tem se mostrado um dos documentaristas mais interessantes do cinema brasileiro recente, capaz de produzir intenso lirismo a partir de um campeonato amador de futebol em Campo de Jogo (2014), e reler a história do cinema brasileiro em conexão com história do Brasil em Cinema Novo (2018). Desta vez, ele parte de um conteúdo típico ao realismo político e à denúncia explícita das violações de direitos humanos. No entanto, recusa-se a se tornar refém de seu tema, ou a colocar a mensagem acima da forma. O diretor encontra maneiras inesperadas de representar o real, aludir ao sentimentos e às sensações, ao invés de apreendê-los em estado bruto na natureza. A heroína não tem qualquer acesso de fúria ou lágrimas que a câmera possa (ou queira) captar: a personalidade e os questionamentos desta mulher se produzem apenas na junção criativa entre som e imagem, inexistindo em qualquer um dos dois separadamente. O espectador é convidado a associar dois estímulos distintos, colando a narração da personagem àquele rosto de expressões inalteradas e boca fechada. Existe um pacto de confiança estabelecido entre cineasta e público: a priori, aquela voz poderia pertencer a qualquer outro corpo, porém acreditamos na fé cênica e na ética cinematográfica ao associá-los.

Em seu gesto de construção, o cineasta chega a utilizar uma montagem de estilo soviético ao conectar, numa única sequência, os olhos de um boi, um culto evangélico e os olhos da protagonista. Ele permite colagens bruscas entre fragmentos, evitando a concepção da “montagem invisível” e transformando a linguagem num objeto de estudo em si mesmo. Edna pode ser considerado tanto um retrato da protagonista quanto um questionamento político e uma digressão sobre o próprio cinema enquanto veículo de significação. O filme se dedica a um processo potente de ambientação, explorando artisticamente o vento, o tempo que passa, a impressão de solidão e abandono da protagonista. Ela não precisa verbalizar nenhum destes aspectos: basta observar o rosto da mulher caminhando à beira da estrada, ou sua expressão durante a fala de outro homem. Neste último caso, a câmera cala o som direto do homem se pronunciando para privilegiar a narração de Edna, em forma de pensamento. Visto que a personagem elabora um livro-diário, intitulado “História da Minha Vida”, Rocha utiliza as confissões sussurradas desta mulher para uma espécie de diário íntimo em off, cortado de uma temporalidade precisa tanto pela condução lânguida quanto pela estetização do preto e branco.

O cineasta encontra na protagonista uma parceira para a elaboração de metáforas: ela também manifesta ambições literárias a partir de seu manuscrito. Em linguagem popular, questiona a vida e o futuro, encontrando na arte uma forma simbólica de expurgo e escapatória aos problemas. A leitura dos trechos impressiona tanto pela riqueza de ideias quanto pelo tom baixo, introspectivo, ao limite do incompreensível. Uma vez mais, a direção recusa a submissão ao conteúdo, preferindo manter fragmentos sem compreensão a legendá-los, dublá-los ou repeti-los para as necessidades da câmera. A voz de Edna se torna um elemento estético em si próprio, independentemente das palavras que veicule. Ela se aproxima de um canto, de uma ruminação que, de tão íntima, pertence apenas à mulher, às vezes alheia aos ouvidos do espectador. O teor desta fala simultaneamente presente e ausente aprofunda o teor etéreo, ironicamente empregado para o retrato da luta concreta pela terra. A protagonista se situa num interessante meio termo entre a posição de objeto de estudo, observado com certo distanciamento não-intervencionista, e a posição de sujeito e protagonista, impondo-se pela voz e pelos movimentos, ocupando a quase totalidade das cenas.

O documentário sofre uma forte guinada no final. Em primeiro lugar, a cor invade a imagem, resgatando uma realidade subtraída anteriormente pelo preto e branco e pela fragmentação narrativa. As cores permitem a aproximação do naturalismo, e também de um tempo presente: identificamos com mais facilidade os lugares, as texturas, os padrões. Em segundo lugar, um letreiro final oferece uma forma inédita de explicação didática, mencionando as disputas de terra no norte do Brasil e as torturas sofridas pela protagonista. Se este texto surgisse no início do filme, ele condicionaria a leitura, fazendo com que o espectador enxergasse Edna pelo viés de vítima, mártir ou heroína. Ao deixá-lo na conclusão, Rocha garante o status de informação complementar, porém não superior à vida desta mulher. Pela fascinante estrutura narrativa, nossos olhos se aproximam progressivamente da heroína: conhecemos as estradas, a cidade, as casas da região, e só então Edna, figura solitária, traumatizada, guerreira e poetisa. Ao invés de partir de um cenário sociopolítico para investigar o humano, o cineasta efetua o caminho oposto: parte da subjetividade para extrair elementos de reflexão passíveis de aplicação ao contexto brasileiro de desigualdade, machismo e coronelismo.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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