Duas Por Uma

12 ANOS 101 minutos
Direção:
Título original: The Stand In
Gênero: Comédia
Ano: 1211
País de origem: EUA

Crítica

6

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Sinopse

Candy Black, a humorista mais famosa do cinema, tem um surto de agressividade em frente às câmeras, sendo sentenciada pelo juiz à estadia numa clínica de reabilitação. No entanto, ela decide pedir à dublê Paula para ir em seu lugar. Aos poucos, a cópia toma gosto pela celebridade, e não deseja abandonar a personagem tão cedo.

Crítica

Candy Black é uma atriz de comédias rasteiras, cujas protagonistas tropeçam e caem no meio da rua, no campo, num casamento, dentro de casa. Considerada a humorista mais famosa de sua geração, ela repete personagens ridículas. O fato de a personagem ser interpretada por Drew Barrymore possui interesse particular. Afinal, a atriz encarnou múltiplas vezes a heroína de comédias escrachadas incluindo disfunções intestinais e objetos voando em direção a testículos, sobretudo em companhia do colega Adam Sandler. Ela inicia esta produção com uma paródia de sua persona, dentro do universo metalinguístico onde não suportaria tantas produções ruins. O bordão de Candy, “Acerte-me onde dói”, diz respeito tanto à dor física das múltiplas quedas quanto o valor embolsado por cada atuação. Em consequência, quanto mais ela se humilha, pior se sente, e mais dinheiro ganha. A fábula da princesa descobrindo que riqueza não traz felicidade se combina com a narrativa mais ambiciosa do palhaço triste, obrigado a fazer os outros rirem embora esteja descontente consigo mesmo.

A segunda protagonista, Paula, representa a dublê contratada para os ensaios, seguindo a diva caprichosa por todos os cantos. Drew Barrymore encarna esta personagem com uma fala excessivamente doce, olhos arregalados de ingenuidade, e uma prótese no nariz que satiriza as inúmeras atuações aclamadas graças à transformação prostética. Na maioria das comédias dramáticas, a primeira mulher seria fria e egocêntrica, enquanto a segunda se resumiria ao cúmulo da inocência. O melhor aspecto de Duas por Uma (2020) provém da disposição a brincar, ainda que timidamente, com este preceito. Partindo dos clichês habituais da dinâmica de opostos, o filme cogita a possibilidade de a dublê possuir ambições maiores do que se imaginava. A narrativa de conciliação entre diferenças se reverte no perigo da superação do original pela cópia: até que ponto a falsa Candy Black, assumindo o papel da atriz de verdade, conseguiria se passar pela outra? Graças à condução da diretora Jamie Babbit, e ao talento da protagonista, o resultado preserva a leveza e esconde as raízes decorrentes do suspense. No fundo, a trama sugere que pode haver apenas uma Candy Black, de modo que a imposição da atriz falsa implicaria na destruição de seu modelo.

As comédias sobre duplos, praticamente um subgênero à parte, costumam ser elogiadas por oferecerem a um ator a oportunidade de interpretarem papéis diferentes – na maioria das vezes, inversos. Este projeto vai além: a atriz muito agressiva e sua comparsa pretensamente inocente sofrem uma drástica transformação até se aproximarem do comportamento alheio. Conforme Candy abandona a fama e descobre paixões menos espetaculares (a curiosa opção pelo universo da carpintaria), a dublê conhece os prazeres da celebridade. Assim, a protagonista selvagem atenua a impulsividade cena a cena, embora mantenha o corpo desleixado e a fala ríspida, enquanto a protagonista doce adquire potência gradativamente, preservando a voz sussurrada e a expressão bondosa. O foco se encontra menos nas oposições do que nas transformações de uma em direção à outra. De qualquer modo, elas jamais atingirão a autonomia, sendo sempre associadas à versão espelhada. Talvez esta seja a condição cruel do projeto dotado de uma conclusão amarga: os dois Ícaros queimam suas asas e voltam ao lugar de onde vieram, juntos. Além de se assemelhar ao suspense, o projeto acena à tragédia.

No elenco, Drew Barrymore monopoliza o filme. O humor se ajusta aos dotes específicos da atriz, desejando comprovar amplitude dramática sem tropeçar e cair – Duas por Uma adota saudável distância do humor pastelão. Não por acaso, a única cena em que Paula vai ao chão ocorre quando a heroína percebe estar presa à personagem fictícia. Enquanto isso, o roteirista Sam Bain concebe uma mulher atraente sem a necessidade de se embelezar para os homens (uma vez afastada dos holofotes, Candy deixa os cabelos desgrenhados e a pele oleosa, sem ser considerada menos feminina por isso). Os personagens masculinos representam versões diluídas do príncipe (porém nem tão belo, nem tão perfeito) e do vilão (nem tão perverso assim). A comédia extrai sua força dos exageros simetricamente opostos, porém a diretora reserva as facilidades ao filme-dentro-do-filme, ao passo que a realidade das protagonistas possui nuances. Infelizmente, a produção desperdiça o talento de Ellie Kemper e Holland Taylor, em papéis pouco relevantes. Barrymore, também produtora executiva, elabora um projeto para chamar de seu.

Com ares de fábula a respeito da crença em si mesmo e da superação de obstáculos, a história se torna uma cautionary tale sobre tomar cuidado com o que deseja. Afinal, as amigas/inimigas encontram o limite da convivência: a guerra entre Paula e Candy se desenvolve no domínio da ficção. Diante das câmeras, apenas uma delas pode existir. Nos bastidores, entretanto, tornam-se colegas de quarto e demonstram curiosa tolerância com a outra – o mundo das imagens se torna mais perverso do que o real. Babbit se atém a sequências pouco ambiciosas (o mundo apático da carpintaria, as incoerências relacionadas ao universo digital, o rosto conhecidíssimo e ao mesmo tempo anônimo da atriz), apesar de se encontrar próxima da distopia nos moldes de Black Mirror. A diretora e o roteirista introduzem atalhos sempre que se aproximam de alguma reflexão amarga, compensando a desilusão com a promessa do romance. Talvez a última barreira a ultrapassar, para esta comédia que despreza a maioria das comédias, seria cogitar a felicidade feminina sem um homem a tiracolo. No entanto, a cineasta possui a consciência de que sua prioridade se encontra na disputa entre estas mulheres enganadas por si mesmas, e devoradas por um sistema que vai além da boa vontade das duas.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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