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Sinopse

Dom Salvador representa um ícone da música brasileira, tendo sido um dos precursores na fusão entre o jazz e o samba. Vivendo em Nova York há décadas, ele mantém as apresentações frequentes e reflete sobre sua carreira.

Crítica

A cidade desempenha um papel fundamental neste documentário, que se abre não apenas com a figura de Dom Salvador, mas com o cotidiano em Nova York. Os metrôs, as avenidas gigantescas, as multidões ocupam as imagens muito antes de presenciarmos o músico sentado diante de um piano pela primeira vez. O documentário dirigido Artur Ratton e Lilka Hara se preocupa primeiramente em criar a ambientação, o ritmo cadenciado e fluido capaz de aludir à música produzida pelo brasileiro. Apesar de menções pontuais à infância do biografado, e de uma explicação sucinta quanto ao período da ditadura militar, o filme não se dedica tanto à formação do artista quanto à sua vida atual, nos Estados Unidos, onde ainda toca com frequência em restaurantes. Os cineastas se interessam menos pela gênese do ídolo do pela sustentação do mesmo, ou seja, pela preservação de uma carreira musical relevante ao longo de muitas décadas. O olhar à velhice poderia atribuir ao discurso um tom saudosista em relação ao passado, ou configurar um dos tantos filme-testamento, elogiando os grandes feitos de uma figura importante em fase avançada de vida.

Ora, o primeiro mérito de Dom Salvador & Abolition (2020) consiste na capacidade de se concentrar no presente, período em que o músico não se encontra no auge da carreira, porém ainda produz música com excelência. Mais do que elogiar o filme por sua edição ou pela pós-produção, cabe ressaltar o trabalho ostensivo de design. Poucos documentários efetuam tamanhas intervenções com letreiros de todos os tipos e tamanhos, molduras coloridas que aumentam e diminuem, fotografias que se recortam como as teclas de um piano, diversos filtros e flares aplicados ao material de arquivo, e mesmo a metáfora do som literalmente entrando pelos ouvidos de uma pessoa, ou adentrando o tronco de uma árvore. Os tradicionais letreiros informativos, que desempenham papel fundamental na narrativa, ganham tratamento especial de cores, fontes, disposição no enquadramento, como se os criadores estivessem sempre pensando na melhor maneira de embelezar as transições, torná-las mais cool, mais jovens e sedutoras. Os editores dispõem de farto material de arquivo para colar e montar, como num mosaico de possibilidades infinitas. Às vezes, paira a impressão de que algumas associações são efetuadas mais por motivos cromáticos e rítmicos do que pelo significado da imagem em si – o que talvez se justifique dentro de um projeto musical.

Os múltiplos recursos gráficos se tornam curiosos diante do estilo cru, quase amador, das captações na rua, ou nos encontros de Dom Salvador com outros artistas e produtores musicais. Após cada vinheta pop, retoma-se a filmagem lavada, sem contraste nem saturação, com uma captação tremida, em registro não muito distante das imagens registradas por uma câmera de celular na mão. A imagem treme excessivamente, buscando o melhor ângulo, indecisa sobre o enquadramento adequado enquanto o plano se desenvolve. Mesmo durante a entrevista com Harry Belafonte, sentado pacificamente dentro de um estúdio silencioso, a câmera se chacoalha para todos os lados. Ora, diante de um contexto tão controlado, por que o tom de urgência? Há uma oposição marcante entre o tom ultra construído e composto do design gráfico e o aspecto assumidamente amador das caminhadas com Dom Salvador pelos parques e ruas. Os dois registros se associam de maneira conflituosa – seria uma opção estética pelo radical, pelo ruído enquanto efeito voluntário? Isso justificaria o som deficiente em algumas entrevistas, dentro de estúdios? O filme chega inclusive a oferecer tomadas noturnas em contra plongée, à noite, quando a cidade se transforma num cenário assustador, em preto e branco, tipo de uma ficção científica. Ratton e Hara interessam-se pelos aspectos mais extremos tanto do naturalismo quanto da artificialidade, sem meios-termos entre ambos.

Ao mesmo tempo, certos aspectos sobre o retrato do personagem merecem questionamento. O filme evita com elegância abordar questões espinhosas na vida do músico. O término da Abolição é abordado como um mistério que os diretores não pretendem elucidar: os ex-colegas de banda afirmam que não sabem, até hoje, o motivo da dissolução do grupo, e o filme tampouco busca respostas por conta própria. Nos últimos quinze minutos, Belafonte afirma que Dom Salvador possui um temperamento difícil de conviver e trabalhar em equipe, mas a fala não encontra eco nos sessenta minutos precedentes. O próprio artista teria dito aos filhos que sua prioridade se encontrava na música, “e depois a sua mãe, e depois vocês”. Uma fala extremamente forte como esta precisaria surtir algum efeito na trama, porém a cena logo se interrompe, e o filme passa a outro tema. É louvável que a narrativa evite se intrometer na vida pessoal, no entanto, ela também despe seu personagem de psicologia. Sabemos dos feitos pontuais de Dom Salvador, mas conhecemos pouco sobre suas dores, traumas, desejos, remorsos e vontades. Os diretores preferem uma abordagem fatual e observadora: ele se converte num corpo em movimento por Nova York, que ainda toca magistralmente quando se senta ao piano.

Resta a impressão de que as viradas não possuem peso dentro da narrativa. A conquista de um show no prestigioso Carnegie Hall, a gravação de um álbum relacionado a essa apresentação (com direito a uma falha técnica grave, podendo anular o contrato), a descoberta que a esposa doente desmaiou em casa são abordados sem que a câmera se interesse à maneira como estas questões são sentidas pelo protagonista. Por mais que a imagem seja ágil, e a música, deliciosa aos ouvidos, resta um retrato humano frio e distanciado. Depoimentos de Elza Soares, Toni Tornado, Ed Motta e Belafonte servem a colocar o personagem num pedestal, cobrindo-o de elogios – mesmo o trecho com Elza Soares, repleto de problemas de captação de som e imagem, é incluído na montagem pela provável vontade de ter uma figura tão importante quanto a cantora entre os testemunhos. Os diretores estão distantes do músico, nem conversando com ele, nem captando o protagonista em momentos pessoais e afetivos. As caminhadas o levam a uma gravadora, ou ao restaurante onde deve se apresentar dentro de 15 minutos. Dom Salvador & Abolition se constrói como um filme de ação, preocupado com os próximos passos e ações do personagem. Para um projeto sobre a música, há pouco espaço para a contemplação das composições em sua forma estendida. Mesmo assim, os cineastas buscam uma metáfora visual para a jam session, para a liberdade profunda do jazz, o que resulta numa obra mais interessante enquanto exercício de forma do que estudo de personagem.

Filme visto online no 12º In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical, em setembro de 2020.  

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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