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Sinopse

Um pequeno grupo de artistas viaja pelo sertão brasileiro apresentando um espetáculo. Ao chegar num vilarejo, descobre uma cidade abandonada, casas, igreja e uma fonte que jorra água limpa, tal qual milagre de um deserto bíblico. Cansados, decidem se instalar no vilarejo e fundar uma nova comunidade, dando a si mesmos papéis diferentes daqueles que exerceram por toda a vida. 

Crítica

Baseado no livro Santa Maria do Circo, de David Toscana, Deserto, estreia na direção do ator Guilherme Weber, tem uma premissa um tanto saramaguiana: atores mambembes chegam em caravana a um pequeno vilarejo e, ao descobrirem que o local se encontra completamente abandonado, decidem se reinventar, com cada um assumindo novo papel numa terra sobre a qual exercem pleno domínio. O absurdo da situação e de alguns aspectos de seu desenrolar, que trazem à tona comentários provocativos sobre o comportamento em sociedade – como a definição de quais profissões seriam fundamentais para o funcionamento de qualquer cidade e o sorteio delas entre aquelas figuras –, remete diretamente ao tipo de história que José Saramago, escritor português vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, gostava de contar.

Em cenários de suspensão das regras de convívio social, fruto de acontecimentos que parecem advir de algum poder maior – a greve da Morte em Intermitências da Morte, a epidemia de cegueira em Ensaio sobre a Cegueira, a separação da Península Ibérica do restante da Europa em A Jangada de Pedra, o surto de votos brancos em Ensaio sobre a Lucidez etc. –, os personagens de Saramago são forçados a escolhas extremas, revelando características que a capa de civilização muitas vezes consegue esconder. Weber dá a impressão de querer seguir por esse mesmo caminho.

No entanto, Saramago era, acima de tudo, um humanista. Se sua obra frequentemente aponta, com imensa ironia, para a faceta mais brutal do homem, ela jamais trata seus personagens como seres desprezíveis, que não merecem mais que o nojo do autor e do leitor. Comunista e ateu, o português via no homem, com todas suas falhas e limitações, o único agente possível de transformação da realidade. Nesse sentido, Deserto não acompanha Saramago. Weber mergulha o filme na degradação experimentada por aqueles que povoam sua narrativa, cada vez mais composta por uma sequência de cenas que se querem chocantes, repulsivas. Algumas funcionam – o monólogo de Lima Duarte, ainda no início do filme, impressiona –, outras soam como pura apelação – a “médica” curando feridas a lambidas e todos os momentos que envolvem alguma sexualidade, por exemplo. A principal referência, aqui, passa a ser o cinema de Lars Von Trier, com seu desejo explícito de provocar o espectador mostrando, por vezes com doses de exagero, o que há de mais feio no ser humano. O uso de uma pequena cidade como microcosmos da humanidade (ou ao menos de uma nação), inclusive, inevitavelmente remete a Dogville (2003) e Manderlay (2005).

Outro aparente problema de Deserto está na construção de sua dramaturgia (texto e atuações). Com elenco formado majoritariamente por nomes mais habituados aos palcos que às telas (a exceção, Lima Duarte, sai de cena rapidamente), o filme conta com interpretações excessivamente carregadas e diálogos que se pretendem importantes. É verdade que tal impostação pode ser justificada pela própria profissão dos personagens de Deserto (atores de talento a princípio questionável) e por eles estarem, na narrativa, também interpretando outros personagens (e a dedicação com que o fazem torna esse talento bem menos questionável). Mas o mesmo não pode ser dito sobre a irritação que surge do conteúdo de muitas dessas falas, carregadas de uma pretensão poética e existencial que o filme não tem estofo para dar conta.

Apesar disso, a estreia de Weber como cineasta tem os méritos de ser esteticamente primorosa – a composição visual da atmosfera de desolação e degradação que toma conta do filme é muito boa – e de carregar um forte olhar autoral, sobretudo no que diz respeito ao entrelaçamento de arte e política para falar do nascimento de uma nação – a brasileira, no caso. Weber é um artista engajado e faz questão de deixar isso público sempre que tem oportunidade. Mais um esforço nesse sentido, Deserto é daqueles passos maiores que as pernas que encantam pela vontade genuína do seu autor de dizer, gritar, algo que ele toma por importante.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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