Crítica

Um único cenário, todos os atores dependendo apenas do seu empenho para cativar a audiência, muitos jogos de luz e sombras, três horas de duração e uma história extremamente poderosa. Assim é Dogville, uma das obras mais radicais de Lars von Trier, um cineasta reconhecido tanto por sua eficiência quando pela ousadia e habilidade em fazer uso do marketing para promover seus títulos. Nesse trabalho, que participou da mostra competitiva do Festival de Cannes em 2003 (antes, ainda, do diretor ser banido do festival), ele se utiliza da força e do impacto de seu roteiro e do talento de um elenco em perfeito sintonia para contar uma fábula de amor e redenção, orgulho e vaidade, perdão e vingança.

Grace (Nicole Kidman, provavelmente no melhor desempenho de sua carreira) é uma garota que certo dia chega à pequena cidade de Dogville, no interior dos Estados Unidos. Ela está sendo perseguida por gângsteres e pela polícia, mas ninguém sabe ao certo por qual motivo. Os poucos habitantes do lugarejo aceitam acolhê-la, e ela, em sinal de agradecimento, passa a retribuir a gentileza com pequenos favores. O problema é que esses poucos gracejos logo passam a ser obrigações, e Grace, de visitante, em questão de dias se transforma na empregada oficial da cidade – e os habitantes dessa, de simpáticos e inofensivos, começam a agir de modo desrespeitoso e ganancioso. Grace, subserviente a todos – inclusive sexualmente – e na esperança que uma boa alma olha para ela com carinho e, finalmente, a ajude, é o centro da ação.

Em Dogville, praticamente todos os personagens secundários giram em torno do drama enfrentado pela protagonista, cada um deles encarnando um estereótipo que represente os principais pecados da natureza humana. E lá temos a vaidade (Chloe Sevigny), o orgulho (Ben Gazarra), a ira (Patrícia Clarkson), a luxúria (Jean-Marc Barr), a avareza (Lauren Bacall), a inveja (Stellan Skarsgard). Grace será a mártir destinada a limpar as impurezas desses, e como um Cristo redivivo e altivo irá se confrontar com eles por uma segunda vez, agora sem tanto desejo de a tudo perdoar, mais próxima, sim, de exercer seu poder numa direta e precisa lição corretiva.

Dogville é uma obra muito curiosa e de grande potencial para as mais diversas interpretações. Sua estrutura lembra a de uma peça de teatro filmada – toda a história se passa dentro de um galpão, com os ambientes separados por marcas no chão – e a estrutura narrativa é muito semelhante à literária – o filme é dividido em nove capítulos, e um prólogo. Mesmo assim, essa estranheza se dissipa em minutos, agindo a partir de então de modo inverso, colaborando com a trama que está se desenvolvendo.

Ambicionando proporções bíblicas para sua obra, Lars von Trier consegue uma conclusão que perdoa qualquer eventual desentendimento anterior, além de, durante os quase 180 minutos de projeção, conduzir o público com precisão para os caminhos desejados, utilizando para isso apenas os recursos a sua disposição imediata. Em Dogville, simplicidade é tudo e fala muito mais alto do que qualquer efeito especial ou trilha sonora comovente. É um filme que precisa ser visto, mas, acima de tudo, pensado e refletido. A mensagem, aqui, segue até os créditos finais – afinal, a lição exposta serve para todos nós, em ambos os lados da tela.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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