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Sinopse

Às vésperas da Revolução Francesa, o cozinheiro Pierre passa seus dias num palácio, preparando as refeições do Duque de Chamfort. Quando a ousadia na escolha de um prato provoca sua demissão, ele decide abandonar a culinária, voltar para seu vilarejo e abrir um pequeno albergue para viajantes. Certo dia, conhece a misteriosa Louise, que insiste em se tornar sua aprendiz na cozinha. Com a ajuda dela, Pierre redescobre a paixão pelas criações gastronômicas e planeja sua revanche contra o duque.  

Crítica

Este drama se abre com letreiros explicativos de ordem antropológica: no século XVIII, ainda não havia o conceito de restaurante, e as refeições constituíam momentos íntimos, familiares. Isso significa que ninguém comia ao lado de um desconhecido. Para a nobreza, os pratos finos equivaliam um elemento de luxo; para os pobres, eram mera questão de sobrevivência. Ora, o drama se dedica a fantasiar a respeito da construção do primeiro restaurante do mundo. Para o diretor e roteirista Éric Besnard, este episódio possui grande importância na história francesa, por representar um gesto de afronta aos privilégios da nobreza (“A boa comida se merece”, argumenta o duque). Além disso, implica num esforço de união entre camponeses que se identificam pela prática comum da alimentação, e um meio de empoderar as classes desfavorecidas, tornando-as menos dependentes da eventual caridade dos ricos. Comer juntos e comer bem passaram a significar um direito fundamental, e na época em que a Bastilha caía em Paris, estas ações implicavam num símbolo da revolução social. O autor observa o período pelo prisma de um cientista social, para quem cultura e política constituem elementos indissociáveis.

É curioso que o interesse pelas práticas à mesa e a evolução econômica do ato de se alimentar seja acompanhada de tamanha romantização da época. Delicioso: Da Cozinha para o Mundo (2021) divide o mundo entre nobres detestáveis, grosseiros e manipuladores, contra funcionários gentis, vitimizados e dóceis. O roteiro mergulha sem meios-termos na configuração no universo lúdico de vilões sádicos recebendo a devida punição por parte destes João e Maria adultos. Há criancinhas famintas, com os rostos sujos de terra e os cabelos bagunçados pela direção de arte, além do jovem estudioso que encarna o futuro da classe operária, a mulher rica abandonando a vida de privilégios para se perceber feliz na pobreza honesta do campo; e o talentoso cozinheiro que rejeita temperos exóticos para valorizar as plantações de sua horta. Aos poucos, o conteúdo fatual se mistura a uma jornada de virtudes, repleta de figuras perversas redescobrindo seu valor e de amores se concretizando apesar das adversidades. As qualidades do cozinheiro Pierre Manceron (Grégory Gadebois) e da aprendiz Louise (Isabelle Carré) se confirmam pelo romance e pela perspectiva de felicidade: apenas os indivíduos realmente bondosos são dignos do amor e do dom da culinária.

Assim, Besnard evidencia seu objetivo: oferecer ao público familiar um romance previsível e reconfortante, ornado por um leve discurso político, do tipo que critica pecados consensuais (a ganância, a arrogância, a ira) sem incomodar quem quer que seja. A metáfora dos pobres se reunindo para lutar contra os poderosos estabelece uma conexão magra com os dias de hoje, posta a facilidade inverossímil da resolução dos problemas. O longa-metragem aposta numa política dos afetos: enquanto as pessoas se gostarem, abraçando sem julgamentos morais a possível prostituta, o idoso sem família e as demais ovelhas desgarradas, triunfará no final. O discurso sabe exatamente onde pretende chegar com sua lição, ainda que hesite quanto aos métodos para a implementação desta luta de classes. A menção à Bastilha, num rápido letreiro final, demarca a distância entre a política nacional e o episódio campestre opondo cozinheiros a nobres. Por isso, os desencontros se resolvem em laços de amizade e amor romântico: a única mulher disponível se transformará na namorada do protagonista, e o único homem em posição de poder será o principal adversário. Para o bem ou para o mal, o roteiro adota uma simplicidade típica das histórias de princesas, fadas e vilões. Esta configuração torna o resultado mais acessível ao público amplo, e também menos incisivo em sua representação do mundo.

Os melhores aspectos decorrem de um elenco bem escolhido e calibrado para as escolhas da direção. Grégory Gadebois possui um olhar dócil, conveniente à figura do homem que aceita tacitamente as ordens impostas por senhores perversos. No entanto, a corpulência se converte em agressão quando necessário. Isabelle Carré construiu sua carreira a partir do corpo frágil, a voz aguda e a expressão de piedade. Ela encarna a mulher pura a ponto de se vestir de freira a certa altura da trama sem despertar rupturas de tom. Para um filme baseado nos heróis resilientes, de sorriso no rosto, o elenco se presta aos papéis com eficiência, incluindo Benjamin Lavernhe na função do adversário, o egocêntrico e elitista Duque de Chamfort. Besnard jamais atribui nuances aos embates entre as partes, pelo contrário: ao imaginar os nobres cafonas e multicoloridos imitando porcos em risadas grosseiras, sublinha seu posicionamento — ainda que não restassem dúvidas quanto à defesa de Pierre. Os atores mergulham no conto de fadas proposto pelo diretor com o todo o investimento emocional que isso implica. Eles atuam alguns graus acima do realismo, garantindo que suas intenções se esclareçam inclusive ao público menos familiarizado com a História e com a linguagem cinematográfica.

Delicioso: Da Cozinha para o Mundo pode ser interpretado como a tentativa de realizar, na França, um equivalente do americano-britânico Chocolate (2000): um conto a respeito do poder mágico da comida, que permite unir amantes e afastar desafetos. O filme francês carrega conflitos suficientes no choque entre os empregados e os empregadores, incluindo a chegada de uma mulher capaz de transitar pelas duas esferas. Mesmo assim, embute uma série de quiproquós acelerados e externos, sem relação direta com o conflito central — caso do acidente com um barril, o problema com o cavalo e o incêndio acidental. O cineasta busca acessórios de roteiro para transformar sua aventura íntima num espetáculo grandioso, dotado de instantes de leveza suficientes para que o espectador possa tolerar a humilhação de Pierre e Louise. Em contrapartida, a montagem nunca encontra um ritmo para tantas guinadas, sobretudo na segunda metade, quando os dilemas se resolvem com rapidez espantosa. Ressalvas à parte, no universo de uma França contaminada pelo imaginário Disney, o drama cumpre suas intenções, oferecendo uma porta de entrada ao tópico mais complexo e sombrio da fome pré-revolução. O principal símbolo da emancipação dos pobres se encontra num pequeno prato, um aperitivo de massa folhada e batatas, ingrediente considerado pouco refinado pelo duque. De certa maneira, o “delicioso” (nome dado à criação) representa um protagonista e símbolo importante desta produção.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em dezembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
5
Alysson Oliveira
6
MÉDIA
5.5

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