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Sinopse

Nurlan é um maquinista de trem que vive sua rotina pacata numa aldeia. Diariamente, ele conduz o gigante de ferro pelo subúrbio da cidade, passando rente às casas, ocupando momentaneamente um espaço utilizado cotidianamente pelos moradores como extensões de suas residências, com direito à disposição de mesas, varais e afins. Prestes a se aposentar, especificamente no seu último dia de labuta, ele nota que um delicado sutiã azul ficou preso no maquinário do trem. Então, parte numa busca pela dona da peça e, talvez, de quebra, pela conquista de um grande amor.

Crítica

O espectador que chegar desavisado a uma sessão desta comédia deve se deparar com algumas surpresas. Primeiro, após alguns sorrisos e rostos carrancudos, percebe-se que os personagens não falam – o diretor Veit Helmer aposta num raro humor de gestos e gags, sem uma única linha de diálogo. Por isso, os atores se tornam mais expressivos, com olhos arregalados e gestos amplos, alguns graus acima do realismo. Segundo, a trama se passa numa cidadezinha onde o trem passa a pouco metros das casas. Como os trilhos servem de quintal e de rua aos moradores, eles precisam abandonar várias vezes ao dia as partidas de xadrez e tirar as roupas do varal para permitir a passagem do veículo gigantesco. Com qual intuito exatamente se desloca este trem sem cargas nem passageiros, não se sabe. Estamos no terreno da fábula lúdica, que dispensa explicações verossímeis. No caso, o único conflito diz respeito a um sutiã levado por acaso pelo trem. O maquinista, então, lança-se numa jornada em busca da dona.

Nosso personagem principal é um homem curioso. Predrag Manojlovic o interpreta com uma apatia beirando a depressão. A imagem de uma mulher retirando o sutiã poderia equivaler a uma pulsão erótica simples, no entanto esse homem não parece extrair qualquer prazer sexual da imagem de mulheres com os seios expostos. Ele tampouco se revela um homem cujo senso de responsabilidade o levaria a encontrar a proprietária da peça de roupa com tamanho afinco. Então por que o maquinista empreende esta jornada? Seria uma crise de meia-idade, a tristeza da aposentadoria, a dor de não ter se casado com mulher alguma? Enquanto procura sua Cinderela azerbaijana, aquela única mulher capaz de preencher o sutiã dos seus sonhos, o personagem não se transforma. O (anti-)herói sustenta o mesmo rosto cabisbaixo, a mesma apatia do início ao fim. Em paralelo, as mulheres se resumem a tipos equivalentes: são carentes, loucas, histéricas. Existe uma divisão anacrônica entre homens e mulheres nesta história – vide a ridicularização do personagem masculino vestido com o sutiã.

Enquanto isso, Helmer efetua a curiosa escolha de oferecer ao espectador imagens realistas. Wes Anderson, Aki Kaurismaki e Roy Andersson são alguns diretores contemporâneos que trabalham fábulas ou esquetes igualmente absurdas, no entanto, procuram uma estética capaz de transmitir não apenas o humor, mas o distanciamento do real. Anderson abusa das cores saturadas, dos movimentos simétricos e planos geométricos; Kaurismaki retira a expressividade dos atores enquanto joga focos de luz duros em seus rostos; Andersson prefere paletas de cores monocromáticas e enquadramentos improváveis com grandes-angulares. Ora, o diretor alemão filma a jornada do maquinista sem real senso de distanciamento. Neste registro mais próximo do real, as atuações soam ainda mais caricatas, e em especial, sente-se a falta dos diálogos. Há diversos momentos em que os personagens precisariam dizer algo para descreverem uma cena ou expressarem o que sentem uns pelos outros, porém são tolhidos pelo imperativo da pantomima.

Ainda mais questionável é o retrato deste conflito enquanto jornada de descoberta e de amor. A música mágica de pianos à la Yann Tiersen (em estilo O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, 2001) e o ponto de vista único do maquinista sugere que torçamos por ele em sua busca. No entanto, conforme a narrativa avança, o roteiro transforma o maquinista num sujeito obsessivo, que persegue todas as mulheres do bairro, inclusive invadindo seus quartos à noite, fingindo-se de médico para ver os seios nus e inventando a falsa profissão de vendedor de sutiãs. Por mais fabular que seja a trama, ela não deixa de romantizar a figura do stalker, ao passo que justifica a imagem da mulher enquanto propriedade masculina (vide as relações com os maridos ciumentos) e trata com surpreendente gentileza a figura de uma criança explorada pela cidade inteira, trabalhando sem ser pago e dormindo na casinha do cachorro. A partir de qual momento uma história deixa de ser doce para se tornar um eticamente contestável?

De Quem É o Sutiã? ainda sofre com o título brasileiro, ainda mais literal que o original (“O Sutiã”), além de alguns problemas graves de montagem e de continuidade. A extensão de uma trama simples até 90 minutos de duração, apresentando apenas personagens-tipos envolvidos num único conflito, deixa a impressão de que talvez o projeto fosse mais apropriado ao formato do curta-metragem do que ao longa – pelo menos, com tal psicologia de personagens e desenvolvimento de ações. Parabeniza-se a coragem de Helmer em investir num tipo de comédia raríssima em nossos tempos, certamente buscando inspiração nos clássicos de Jacques Tati e Buster Keaton. No entanto, o conteúdo é pouco ajustado a este tipo particular de humor (algo que Elia Suleiman traz à contemporaneidade com maestria, por exemplo), sofrendo com a ausência de timing cômico, com a estética naturalista demais e principalmente com o ponto de vista retrógrado das relações sociais.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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