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Sinopse

Natasha e Olga trabalham na cantina de um instituto secreto de pesquisa soviética. Este é o coração pulsante do universo DAU, todo mundo entra no local: funcionários, cientistas e convidados estrangeiros, como Luc Bigé. Natasha começa um caso com ele, mas não antes que ela e Olga tenham uma longa conversa sobre o amor, o que os coloca em conflito.

Crítica

Existe uma curiosa corrente do cinema-verdade que defende não apenas imagens o mais realistas possível, mas também a comprovação de que os atores realmente passaram pela situação de seus personagens. Filmes cujo elenco engorda ou emagrece demais, raspa ou cabelo, passa por longos processos de clausura ou autopunição para “sentir de fato a dor do personagem” carregam certo fetiche de uma verdade suplementar, como se desta vez, e desta vez apenas, o cinema não estivesse mentindo para nós. Ironicamente, a busca pelo cinema sem truques acaba por revelar uma descrença no poder de criação inerente à própria linguagem. Todo filme é truque, toda câmera posicionada em certo local efetua uma seleção parcial e subjetiva da realidade, incluindo alguns elementos na imagem enquanto exclui outros. Se o cinema consegue sugerir a imagem de atores sofrendo sem fazê-los sofrer de fato, por que sujeitá-los a este calvário?

DAU. Natasha (2020) acredita nesta forma de martírio virtuoso. As relações pessoais entre os protagonistas do projeto russo são carregadas de brutalidade: a gerente da cantina do Serviço Soviético agride fisicamente sua funcionária desde a primeira cena. A câmera, em planos abertos e longos, garante que a violência não seja simulada pela montagem – as atrizes estão de fato se batendo. Mais tarde, Natasha (Natalia Berezhnaya) faz sexo com um cientista francês, e vemos o ato explícito, com a atriz de fato efetuando sexo oral no colega ereto. Talvez efeitos especiais pudessem ser usados para recriar este efeito, no entanto, nesta forma de cinema de planos-sequência, deseja se comprovar a veracidade do ato – e nada possui maior aparência de verdade incorruptível do que um pênis ereto. Mais tarde, a gerente será obrigada por torturadores a enfiar uma garrafa na vagina e beber litros de álcool. Quando o braço do torturador cobre parcialmente a boca de Natasha, a câmera logo se desloca para apreender o momento por outro ângulo – afinal, é importante mostrar que a atriz está realmente cometendo esses atos.

Em paralelo, a estética busca a melhor maneira de sugerir a realidade não-falseada. Cada plano possui longuíssima duração, incluindo diálogos banais e repetidos, de modo a reforçar o aspecto cotidiano daqueles momentos. A câmera no ombro, tremendo livremente de um corpo ao outro, permite que as atrizes desempenhem longos conflitos sem cortes, numa dinâmica próxima da estrutura teatral. A montagem, quem diria, também é interpretada enquanto forma de impureza e/ou manipulação. Os diretores Ilya Khrzhanovskiy e Jekaterina Oertel possuem talento evidente para este tipo de mise en scène, tornando as interações bastante verossímeis – dos insultos às agressões físicas, com destaque para as numerosas cenas de embriaguez – e sustentando a duração de cada plano. As pessoas se comunicam como o fariam em um contexto plausível, repetindo-se, fugindo do tema para retornar ao mesmo em seguida, escolhendo as palavras erradas. Há notável talento para a reprodução da dinâmica oral das falas, assim como para a direção de atores. As duas atrizes principais, em especial, entregam-se a momentos chocantes sem sublinharem a evidente vaidade deste espetáculo.

O filme torna-se incômodo não apenas pelas longuíssimas cenas de humilhação, estupro e outras violências sexuais, e sim por sabermos se infligiu às atrizes momentos muito próximos dos reais – e repetidos diversas vezes, diante de uma equipe numerosa, como convém às necessidades de uma produção deste porte. Poderia se falar em sadismo neste cinema que tortura seus personagens em nome de uma virtude cênica. É possível se sentir tão mal por Natasha, a funcionária fictícia, quanto por Natalia Berezhnaya, atriz que a interpreta. Ao mesmo tempo, existe uma questão ética delicada na representação da violência, notadamente de ordem sexual contra mulheres: por mais saudável que seja abordar o tema – seja para debatê-lo ou criticá-lo – a representação do ato pelo prazer do choque se torna. Mesmo possuindo uma diretora mulher na dupla de cineastas, este projeto transparece tanto o fetiche da verdade a qualquer custo quanto o fetiche da violência-espetáculo. DAU Natasha deseja chocar o público para reproduzir a dura vida das mulheres naquela época.

No entanto, esta forma de pensamento literal nega mais uma vez as potencialidades criativas da arte cinematográfica. Não é preciso ser violento para se discutir a violência, não é preciso ser explícito para discutir a humilhação explícita. Acreditar que o público possa “ter a experiência de ser violentado assim como aquelas mulheres” constitui algo ao mesmo tempo ingênuo e perverso. Enquanto forma de conscientização, talvez o efeito desta fábula de violências retroalimentadas – Natasha reproduz com sua funcionária a agressão que sofre – seja tão retórico quanto aquele das imagens de pulmões corroídos no verso de maços de cigarro. Elas chocam, provocam asco, mas depois se vira o rosto, se pensa em outra coisa e se recalca o horror da mensagem. Diante de fatos históricos como os horrores da ditadura soviética, dialogar apenas com as emoções mais epidérmicas, ao invés da razão, soa redundante, ou mesmo contraproducente. O filme termina por afirmar que havia abusos de poder e violações de direitos humanos em regimes ditatoriais – mas quem não sabia disso? Maltrata-se o elenco, fetichiza-se o dispositivo cênico para atingir algo que não vai muito além da constatação dos fatos.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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