Crítica

No começo de Corpo Estrangeiro vemos pessoas submergindo na água. Plasticamente bonita, a cena alude aos infortúnios dos refugiados, tema controverso, especialmente na Europa. A tunisiana Samia (Sarra Hannachi) sobrevive, chegando sozinha à França. Inexplicavelmente, localiza com facilidade um antigo vizinho, Imed (Salim Kechiouche), que lhe acolhe instantaneamente, prometendo auxiliar na procura de um emprego. Em dado momento, é sintomático que os homens árabes, a despeito da nova situação no país estrangeiro, incorram na presunção de que a protagonista, por ser mulher, deva lavar os pratos. Intui-se, então, que a cineasta Raja Amari vai enveredar pela senda da crítica social e comportamental, colocando em xeque até mesmo os valores milenares reproduzidos como mensagens escritas diretamente pelas divindades em certas culturas. Todavia, infelizmente, nada disso acontece. Temos um longa-metragem quase totalmente inverossímil, com reviravoltas rocambolescas.

A grande Hiam Abbass interpreta Leila, mulher que contrata Samia após uma série de coincidências e do encaixe forçado de determinadas peças importantes. Recém-viúva, médio-oriental há muito estabelecida na capital francesa, ela aceita a presença da jovem exilada sem documentos e perspectivas, embora seja pouco explorada uma provável identificação. Aos poucos, notamos Samia se transformando, mais externamente que internamente. O figurino se torna mais vasto, porém à personagem não são proporcionados indícios de evolução. A forma completamente descabida dela agir, primeiro, tentando seduzir Imed – sequência em que temos reiterado o machismo, vide a reação masculina às provocações numa festa, mas sem a potência e a sutileza de antes –, e, segundo, afrontando a patroa, de cuja benevolência depende sua permanência, deixam exposto um gênio forte, mas pouco consistente, pois sem sustentação. Mas as coisas ficam ainda piores quando Leila decide mediar a relação entre Samia e Imed.

A formação de um improvável e absolutamente deslocado triângulo amoroso enfraquece sobremaneira Corpo Estrangeiro, rebaixando suas aspirações, bem como o contexto social do qual se vale inicialmente. Gradativamente, a trama se resume a um jogo superficial de ressentimentos trocados, com Samia despeitada em virtude do interesse tão súbito quanto desarticulado de Leila por Imed. Chega a ser constrangedor ver uma atriz do calibre de Abbas fazendo caras e bocas de repentina apaixonada na companhia de um semidesconhecido, o que contraria integralmente a formação de sua identidade na tela. Poucas coisas parecem merecer atenção na realização de Raja Amari. De uma hora para outra, a protagonista passa de estrangeira acuada, vivendo uma situação desesperadora, a mulher bem vestida. O ciúme trata de amplificar a banalidade que toma conta do filme. O malogrado ménage à trois é a gota d’água. Qualquer intenção, que não a banal demonstração de dor de cotovelo, é ali soterrada.

O excesso de coincidências e facilidades também depõe contra Corpo Estrangeiro. Parece extremamente fácil ter oportunidades num país hostil a refugiados, com altos índices de xenofobia, como a França. Encontrar antigos conhecidos a milhares de quilômetros de distância, fortuitamente na rua, é entendido como algo perfeitamente natural. A tragédia familiar de Samia, em parte provocada por sua denúncia do membro jihadista, é utilizada irresponsavelmente pela cineasta, que deliberadamente faz sua personagem reprisar uma atitude da qual ela supostamente se arrependeria, isso sem um contorno crítico. Muito distante de refletir amplamente as questões acerca da evasão dos países médio-orientais e da posterior acolhida do chamado velo continente, este longa-metragem se contenta em revestir um romance aspirante a erótico com finas camadas de pretensa consciência coletiva, desperdiçando, especialmente, a presença luminar de Hiam Abbass.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *