Crítica


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Sinopse

Ben vive num bairro repleto de imigrantes em Tel-Aviv, com seu namorado Raz. Eles pensam em conseguir uma mãe de aluguel para o primeiro filho do casal, mas um incidente distrai Ben dos planos familiares: dois homens da Eritreia se apoiam sobre uma árvore que ele acaba de plantar em frente ao prédio, e correm o risco de quebrá-la. O rapaz liga para a polícia, alegando depredação de bens públicos. Mas quando os oficiais chegam, eles espancam gravemente os imigrantes negros. Ben seria responsável pela tragédia?

Crítica

O conflito moral que move Concerned Citizen (2022) constitui o típico material para um dos dramas de Asghar Farhadi. Um homem bem-intencionado, como sugere o título, planta uma árvore na calçada em frente à sua casa. Ao ver dois homens apoiando-se na plantinha frágil, liga para a polícia, denunciando danos à propriedade pública. No entanto, os policiais recebem com incrível brutalidade a dupla de imigrantes negros, linchando-os na rua até a possível morte. Ben (Shlomi Bertonov) seria responsável pela tragédia ocorrida? Ele deveria se denunciar, tentar reparar o ato de alguma maneira? O diretor de A Separação (2011) e Um Herói (2021) provavelmente reuniria, no estudo das consequências, inúmeras classes sociais, gêneros e origens, num percurso onde a atitude de um indivíduo interferiria negativamente na vida alheia, e assim por diante, em efeito cascata. Ora, o israelense Idan Haguel possui uma cartilha modesta: ele se atém ao olhar perdido do jovem gay, que assume uma postura derrotista dentro de seu apartamento confortável. Ele e o namorado Raz (Ariel Wolf) se preparam para ter um bebê via barriga de aluguel, porém os eventos daquela noite impedem este arquiteto de se dedicar com atenção ao planejamento familiar. O cineasta iraniano compreendia que, num ínfimo dilema de vizinhança, pode haver implicações em todos os ramos da sociedade. Já o israelense acredita que, em primeiro lugar, existe a consciência pesada do protagonista.

De fato, o longa-metragem concebe um universo reduzido em personagens, conflitos e ambições. Há apenas o casal central e dois amigos acessórios, introduzidos pelo roteiro durante um jantar para trocarem palavras protocolares com os donos do apartamento e lhes dar a réplica ao anúncio da paternidade. De resto, psicólogo, agente imobiliário e imigrantes eritreus serão condicionados ao relacionamento com o herói, um arquiteto que passa os dias efetuando o mínimo esforço no trabalho, e também no relacionamento com o namorado. Devido à atuação ausente de Shlomi Bertonov e à condução do diretor (em planos estáticos, marcados por cores dessaturadas e profundidade de campo reduzida), o sujeito sustenta um ar de indiferença ou morosidade, incompatível com um tema que se pretende urgente. As cenas são movidas por diálogos entre sujeitos sentados ou de pé, que esperam o “ação” para existirem de fato: nenhum deles possui ocupação prévia ao tema de cada sequência. Por isso, a exploração do contexto socioeconômico se torna vaga: que outros imigrantes havia ali? De que maneira a família do rapaz agredido é afetada? Ora, a vítima do linchamento, sem nome nem descrição do estado de saúde, será descartada pela narrativa. Nem o sistema, nem o longa-metragem se importa de fato com o tipo espancado, ou com o choro de uma família eritreia no andar de cinema. Haguel não pretende honrar estes sujeitos marginalizados, muito menos abrir o escopo para quem falem por si mesmos: o protagonista se encarrega sozinho de supor violências que os vizinhos teriam sofrido em seu percurso. O proprietário privilegiado fala em nome do jovem negro invisibilizado.

A postura deste protagonista poderia ser vista de maneira crítica: várias obras já expuseram o raciocínio contestável de seus personagens principais, dissociando-se das atitudes dele. Ora, Concerned Citizen acredita de fato que Ben seria o verdadeiro sujeito afetado por essa história, e estaria tomando as atitudes cabíveis. Rumo à conclusão, decisões inverossímeis confirmam a impressão de que a morte de um trabalhador negro serviu de mero instrumento dramatúrgico para provocar o crescimento pessoal do rapaz privilegiado. Afirma-se então a vocação ao elogio do white savior, o salvador branco das minorias, movido por sua white guilt (culpa branca), tentando reduzindo o desgaste causado por ele mesmo. Ainda que o povo judeu tenha um histórico inegável de perseguição, e a homossexualidade o coloque num lugar de fala diferente daquele do patriarcado, ele se torna o sujeito burguês neste caso, sacrificando-se, entre aspas, para apaziguar o sentimento de culpa. A situação dos vizinhos perseguidos restará inalterada, mas quem se importa? O cineasta acredita estar solucionando um trauma recalcado, e abrindo as vias para que Ben e Raz componham uma família feliz, impregnada pelo pequeno racismo nosso de cada dia. Onde se pretende irônico, o discurso se revela em conformista, tolerando opressões cotidianas contanto que poupem a saúde mental dos ocupantes de apartamentos de classe média. 

Interpretado no prisma do cinema LGBTQIA+, o projeto constrói um romance naturalista, onde questões de orientação sexual deixam de constituir um motor de conflito — o casal está bem resolvido com sua homossexualidade, sendo aceito pelos amigos e por desconhecidos ao longo da história. A representação do homem gay se naturaliza a ponto de se converter num não-conflito, um fato banal. A potência raivosa e sexualizada, decorrente da solução do dilema, incomoda enquanto encarnação de uma masculinidade opressora, mas não se relaciona diretamente com a orientação de ambos. A parcela de humor apresentada na sequência de abertura (o plantio da árvore, o café da manhã ao som de Casta Diva, o robozinho de limpeza girando pela superfície) logo se abandona por completo; ao passo que os cortes bruscos da montagem, saltando ao dia seguinte, provocam um efeito de estranheza — deveríamos rir desta suspensão inesperada dos problemas? A fábula singela do homem que faz as pazes consigo mesmo, embora o mundo continue pegando fogo lá fora, seria beneficiada pela ironia anunciada a princípio, e frustrada a seguir. Haguel oferece um trabalho indeciso em termos de tom, apesar de claríssimo em suas mensagens didáticas, que dominam a aventura monotemática de Ben. Caso se encerrasse sobre alguma ironia profunda (um sentimento de vacuidade nas ações deste herói sem virtude, por exemplo), deixaria as portas abertas a uma leitura crítica. Ora, a conclusão consagra os esforços do protagonista, recompensando-o. A aventura se encerra sem perceber a tristeza por trás de seu final feliz.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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