Crítica


7

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Ao completar 18 anos, uma jovem começa oficialmente a ganhar as próprias asas. No entanto, esse momento transformador e importante coincide com uma gravíssima crise de saúde global. Diante disso, o que fazer?

Crítica

Coma (2022) se inicia com uma dedicatória e um pedido de desculpas. Sem vozes correspondentes, as linhas desta carta desfilam pela tela em silêncio, acompanhados por um mosaico pixelizado de imagens caseiras. Seria algum registro familiar distorcido pelo zoom extremo, beirando a abstração? Bertrand Bonello dirige-se à filha Anna, hoje com dezoito anos, explicando que dedica a ela este novo filme, posto que os personagens têm idades semelhantes à dela. O diretor admite que já tinha dedicado uma obra à menina antes, mas falhou em seus propósitos: primeiro, Nocturama (2016), previsto para ser uma obra leve e clara, tornou-se “longa e complicada”, nas palavras do criador. Segundo, a própria Anna nunca assistiu ao resultado final — mas sem ressentimentos, garante o pai. Agora, num mundo marcado pela Covid-19, associada às mortes de familiares, a dificuldade de filmar e mesmo sair de casa, ele sente que precisa, uma vez mais, oferecer à garota sua interpretação do estado das coisas. Mais do que uma homenagem, o projeto se converte num testamento, uma iniciativa de amor e um gesto de transmissão entre gerações — que outro presente poderia entregar um cineasta? “Por mais rigorosos que sejam os invernos, a primavera sempre chega”, garante o texto otimista quanto ao final da fase pandêmica. O filme se insere numa atmosfera de melancolia, solicitando, no entanto, um pouco de fé no futuro representado pela própria filha.

Apesar do início grave e filosófico, a obra está distante de uma reflexão dolorosa a respeito de nossos tempos. Pelo contrário, Bonello dedica-se a uma sucessão de esquetes tragicômicas, hilárias e amadoras (nos dois sentidos do termo) acerca de relacionamentos frustrados, e dos perigos (reais e imaginários) da permanência em casa. O diretor solicita a grandes atores jovens (Vincent Lacoste, Gaspard Ulliel, Louis Garrel, Laetitia Casta, Anaïs Demoustier) que componham as vozes originais de uma animação em stop motion com bonecas Barbie, satirizando o comportamento de uma juventude fútil e hiperconectada. Enquanto a Barbie hesita em manter o namoro com o rapaz que provavelmente a trai, os moços fazem prova de sua baixa inteligência, em nível delirante. O próprio fato que a protagonista (Louise Labeque) ainda tenha uma casa de bonecas no quarto, com a qual brinca durante a reclusão, adiciona um caráter improvável ao dispositivo. Durante uma chamada em videoconferência com as amigas, elas discutem seus principais assassinos em série, até serem atingidas por um deles, dentro de suas casas. O texto apela à nossa necessidade de ficção quando confrontados a uma realidade dura demais: a mente divaga, delira, procura um cenário alternativo. O cinema, a música, os desenhos, os vídeos no YouTube e a imaginação servem de válvula de escape. Curiosamente, a heroína se vê presa numa casa desprovida de adultos, sem trabalho nem estudo a fazer: o cineasta converte o isolamento social num cárcere de tédio e luxo, retirando da equação os problemas sociais, financeiros e familiares.

Em contrapartida, a melhor personagem se encontra na ficção-dentro-da-ficção. Patricia Coma torna-se uma representação hilária da comunicação via Internet durante a pandemia. Trata-se de uma improvável “influenciadora de tudo”, uma blogueira para todos os assuntos. Ela ensina receitas de bolo, vende produtos eletrodomésticos, discute filosofia clássica, lança hipóteses sobre Michael Jackson e ensina a utilizar jogos eletrônicos. A jovem, brilhantemente interpretada por Julia Faure, atinge o ápice de uma sedução esvaziada de sentido: ela mantém a voz doce e aveludada, conversando com o espectador como se estivessem numa confissão íntima a dois. A comunicadora fornece pérolas de sabedoria, tão vazias quanto o discurso dos coaches motivacionais, enquanto insiste que a solução para as angústias pandêmicas se encontra dentro de qualquer um, bastando um pouco de esforço e atenção ao seu canal. “Aqui, você aprende a viver melhor”, repete. Patricia articula pensamentos absurdos (a sopa quente de produtos crus) com um vocabulário refinado e uma postura de especialista, sendo uma excelente ilustração deste período anticientífico, que valoriza amadores ao invés de estudiosos, e espalha desinformação contanto que sirva aos desejos de seu interlocutor. Esta apresentadora simboliza a falência trágica de um circuito de conhecimento, numa mistura perturbadora de naturalismo e fantasia.

A propósito de fantasia, o longa-metragem mergulha nos pesadelos da garota na floresta, repleta de mortos do passado; em paralelo ao cinema de animação em 2D, às risadas artificiais das sitcoms norte-americanas, e aos prazeres epidérmicos do cinema de horror. O autor satiriza o artifício, o senso de perdição e não-pertencimento durante este período batizado limbo. Junto a Patricia Coma, estima que estamos numa fase de transição, um subnível onde seria impossível permanecer indefinidamente. Através da linguagem caótica e brincalhona, sugere que estejamos num parêntese da modernidade, uma suspensão do real, ou ainda uma fase de extremos que não corresponde à nossa forma de ser em sociedade. Sairemos do limbo, promete a carta final, “em breve”. Algumas mensagens de esperança se baseiam na moral, na fé, nos ciclos inevitáveis da história. Bonello prefere a filosofia e o funcionamento da natureza, convertidos em sinais de que tamanha angústia está com os dias contados. A adolescente terá encontrado a saída da floresta noturna e infinita; romperá com o ciclo viciante do brinquedo batizado Reator; reencontrará a amiga desaparecida; fechará a casa de bonecas. Estamos alucinando, sem dúvida, porém todos juntos. Isso é apenas ficção, insiste o cineasta, num discurso que vale tanto para o seu filme quanto para os acontecimentos atuais. A obra se assume orgulhosamente como um sintoma de seu tempo, além de uma tentativa de compreender o tormento no qual ela insere.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022. 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *