Crítica


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Sinopse

A Ditadura Civil-militar que comandou o Brasil por 21 anos a partir da perspectiva de Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, último comandante da Ação Libertadora Nacional (ALN), e de seus companheiros de guerrilha.

Crítica

Codinome Clemente (2019) constitui o que poderia se chamar de filme-descrição, ou então um cinema de reconstituição de fatos. Ao convidar Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz para narrar sua história à frente da Ação Libertadora Nacional, a diretora Isa Albuquerque busca uma versão oficial da luta armada contra a ditadura militar. Poucos colegas são convidados a comentar as decisões do líder do movimento, e todas as falas corroboram as declarações do protagonista. O documentário não apenas se concentra em narrações sobre o passado, mas também se volta inteiramente aos anos 1960 e 1970. O que significa falar em comunismo dentro do Brasil delirante de 2020? O que representa a memória da guerrilha atualmente, e como as perspectivas de luta se transformaram desde então? Quais membros da ALN e grupos semelhantes integraram a política partidária, além de Aloysio Nunes, e como adaptaram os ideais revolucionários à social-democracia, ao capitalismo e às alianças com ideologias opostas? Nenhuma destas respostas se encontra no filme. A diretora evita efetuar uma ponte entre passado e presente: os acontecimentos de décadas atrás se encerram em si mesmos.

Há pouco trabalho de pesquisa para além das falas do guerrilheiro: a câmera se restringe à oferta generosa de que ele se expresse livremente. É “Clemente”, segundo o apelido da época, que controla os rumos da trama e o ponto de vista. A cineasta teria alguma discordância com os métodos dele? Acreditaria na possibilidade de implementar a luta armada no século XXI? Não se sabe. As falas potentes do personagem se tornam retóricas enquanto veículos de reflexão: elas pretendem bastar em si mesmas, sem se confrontarem a avaliações distintas. No melhor momento do filme, dois antigos membros do movimento discordam quanto à necessidade de pegar em armas. Entretanto, nenhum deles é Carlos Eugênio, e a polida divergência ocorre somente via montagem. Os dois não se encontram, nem replicam os argumentos alheios. Há pouco atrito no retrato de decisões políticas tão controversas, inclusive dentro da esquerda, no que diz respeito ao uso da violência para fins de luta social. Para a autora, o testemunho do comandante se torna uma potência e uma finalidade em si mesma.

Em primeiro plano, o personagem sustenta este one man show com facilidade. Ele confessa orgulhosamente todas as ações, minimizando os efeitos dos assassinatos julgados necessários para aquele período. O único remorso cabe às oportunidades perdidas de matar torturadores e apoiadores da ditadura, como o delegado Sérgio Fleury. Poucos guerrilheiros se comunicam com tamanha lucidez a respeito de medidas controversas, como a eliminação de um colega de grupo. É comum tecer elogios a testemunhos tão despojados quanto os de Carlos Eugênio, no entanto, ele talvez reproduzisse um discurso semelhante a qualquer pessoa interessada em escutá-lo – vide a roda de conversa com amigas francesas. Há uma necessidade da esquerda revolucionária em reivindicar a legitimidade de seus gestos, ao invés de transformá-los em tabus pós-Lei da Anistia. Outra abordagem possível se encontraria no viés psicológico, seja pela autoafirmação do comandante, seja pelo remorso, constrangimento ou contentamento de si. Ora, o filme tampouco mergulha na subjetividade deste homem. Rumo ao final, uma rápida sequência introduz as principais mulheres na vida dele. Jamais saberemos como os planos da ALN influenciam o dia a dia do protagonista.

Além de questões relacionadas ao ponto de vista, Codinome Clemente possui sérios problemas de ordem técnica e de linguagem. Embora o protagonista ofereça seu testemunho a partir de um estúdio, ou em ruas calmas e contextos cotidianos, não parece haver uma preparação prévia para as filmagens. A câmera hesita a todo instante entre a captação destas falas, o enquadramento do rosto e os cenários. Tremendo em excesso, o dispositivo fecha o enquadramento na expressão do protagonista, mas então decide acompanhar a gesticulação e os cigarros entre os dedos, para depois se questionar se deveria revelar as inúmeras ruas e esquinas apontadas por ele. Em algumas sequências, efetua um zoom in agressivo, seguido de um zoom out, alterando a profundidade de campo. A indefinição estética chama tanta atenção a si própria que desvia o foco de falas importantíssimas. Cenas como o jantar em Paris, o encontro com adolescentes numa escola e a confissão emocionada na rua trazem um trabalho de câmera tão caótico que, na maioria das produções, teriam sido eliminadas do corte final (ou manteriam apenas o som sobreposto a imagens diferentes).

Em paralelo, uma animação competente contrasta com a simplicidade da fotografia, luz e correção de cor das entrevistas que a antecedem ou sucedem. A visita aos cenários das ações revolucionárias, descritas passo a passo por Carlos Eugênio (“Eu corri por aqui”, “Ele fugiu por aquela rua”, “Os policiais chegaram por aquela esquina”) possui efeito quase nulo, visto que a direção praticamente não revela estes espaços. A importância da música no amadurecimento deste homem é citada nos quinze minutos finais, e não se desenvolve. O documentário sofre com a ausência de um roteiro preciso, de um discurso assertivo e de uma montagem mais articulada. Afinal, o que o projeto extrai das falas do comandante, para além da constatação de que a luta armada existiu e foi extinta? Qual ponderação extrai da percepção dos fatos? Que efeitos surgiriam do encontro entre Carlos Eugênio e antigos colegas da ALN, da reunião entre o protagonista e familiares de Carlos Marighella, políticos de esquerda contemporâneos, estudiosos da ditadura militar? Infelizmente, as confissões deste homem fascinante (concordando com suas atitudes ou não) se contentam com muito pouco em termos cinematográficos.

Filme visto online no 15º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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