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Sinopse

Cyntoia Brown é condenada à prisão perpétua com apenas 16 anos. Todavia, diversos elementos podem influenciar uma mudança de veredito.

Crítica

Existem alguns elementos curiosos não apenas no julgamento de Cyntoia Brown, adolescente condenada à prisão perpétua por homicídio, mas também no modo como o filme aborda esta condenação. Seria fácil para o diretor Daniel H. Burman assumir o aspecto “justiceiro” do cinema documentário, dizendo ao seu espectador: “Tudo o que você sabia sobre o caso até agora era mentira. Eis a verdade”, apresentando então fatos inéditos, imagens exclusivas, dados improváveis. No entanto, Clemência: A História de Cyntoia Brown (2020) jamais reivindica a posição de documentário revelador, tampouco investe num trabalho arriscado de jornalismo investigativo. Esta história de assassinato constitui um caso bastante transparente: Cyntoia matou o cliente Johnny na época em que se prostituía, e sempre sustentou a mesma versão dos fatos. Ela admite o crime, e apesar de alegar legítima defesa – por acreditar que o homem agressivo iria matá-la -, jamais demonstra arrependimento. Dezesseis anos se passaram entre apelos e contestações, porém sem mudanças capazes de transformar substancialmente os rumos da história.

Assim, Burman não denuncia as falhas pontuais do sistema penal norte-americano, a exemplo de julgamentos equivocados. Ele prefere adotar uma postura ainda mais ousada ao solicitar que o público questione a legitimidade da legislação vigente como um todo. O documentário constitui um exercício de argumentação: mesmo diante dos acontecimentos incontestáveis e incontestados, o diretor defende a tese pessoal de que Cyntoia deveria ser libertada. Apesar de este ser um “filme de tribunal” no sentido estrito do termo, concentrando a quase totalidade das imagens entre prisões, audiências e conversas com advogados, o discurso da direção não contesta os fatos, apenas nosso julgamento moral a partir deles. Burman, assumindo o papel de advogado de defesa, apresenta seus argumentos: a garota possui deficiências intelectuais, transtorno de bipolaridade, provém de uma família marcada por alcoolismo, violência e estupro em três gerações de mulheres, e realmente acreditava que corria risco de morte naquela noite. Ao invés de sugerir que Cyntoia Brown constitui uma pobre vítima, ele argumenta que fatores contextuais devem ser levados em consideração. Matar alguém é errado, e ninguém contesta este princípio. No entanto, o que leva alguém a cometer um assassinato?

O filme levanta discretamente uma discussão que vai muito além da história de Cyntoia, sobretudo no que tange à natureza contra a criação enquanto elementos formadores do indivíduo. Não é incomum se deparar com vozes conservadoras que atribuem qualquer decisão ao livre arbítrio: ela matou, não deveria ter matado, logo, deve ser punida. No entanto, este olhar punitivista, que transforma a justiça em instrumento de vingança, sobrecarrega as pessoas de responsabilidade enquanto isenta o Estado de culpa pela formação de criminosos. Este documentário ataca em ambas as vertentes, sucessivamente: enquanto sugere que o alcoolismo da mãe provocou distúrbios psicológicos severos na ré, e que o diagnóstico de bipolaridade deveria aliviar a culpabilidade pelo crime, sustenta que o abandono da mãe e os episódios de estupro e violência sexual teriam criado as condições para que agisse de maneira violenta quando se estimasse em perigo. Pode-se argumentar que não seria o papel do cinema defender um dos lados de maneira tão unilateral, porém o cinema tem o direito de fazê-lo contanto que deixe clara sua posição (sem buscar a impressão de imparcialidade) e forneça argumentos capazes de sustentar o raciocínio. Neste sentido, Clemência: A História de Cyntoia Brown constitui uma provocação moral válida ao confrontar o espectador com a defesa de uma mulher condenada.

Ao mesmo tempo, sem gritar palavras de ordem, o documentário fornece outros pontos de questionamento válidos: a rigidez do sistema penal norte-americano, a legitimidade da prisão perpétua, que impede a possibilidade de melhoria e reinserção na sociedade, o desconhecimento das novas gerações sobre seus direitos e deveres (estatísticas são lançadas para comprovar que uma porcentagem impressionante de jovens desconhece o direito de “permanecer calado” até a chegada de um advogado). Isso não impede que o filme possua suas limitações. A principal delas se encontra no tratamento do tempo: o documentário se gaba de ter sido elaborado ao longo de dezesseis anos, acompanhando a protagonista desde a detenção inicial até 2019. No entanto, a montagem tem dificuldade em trabalhar saltos temporais, visto que pouca mudança se produz no dossiê referente a Cyntoia. Em muitos casos, letreiros indicam que mais dois ou três anos se passaram, e então nos deparamos com o mesmo semblante da personagem caminhando pelos corredores da penitenciária. Por que fornecer tantos pequenos saltos se não há elemento novo a apresentar em cada período selecionado?

A principal transformação digna de interesse se encontra num âmbito ao qual o diretor não possui acesso: a psicologia da personagem. Quais foram as angústias, medos e descobertas dentro da prisão? Como ela decidiu fazer uma faculdade de dentro da cadeira, e de que forma estas leituras a transformaram? O que dizer do contato com outras detentas, da reflexão sobre si mesma, sobre o direito, sobre as calúnias lançadas contra ela nos tribunais? Não sabemos. Cyntoia Brown constitui o objeto de estudo do projeto, mas não seu sujeito. Ela nunca possui voz por si mesma: embora exista farto material de arquivo, bem orquestrado por uma montagem convencional, porém fluida, não se tem acesso ao que ela realmente sente durante todo este tempo. De que adianta produzir um documentário durante dezesseis anos se esta duração não é percebida na vida da protagonista? De que modo os Estados Unidos mudaram neste período em relação ao encarceramento em massa? Que perspectivas se abrem à garota após o perdão do governador do Estado? Curiosamente, é na hora que o documentário se encerra (em tom sentimental e cafona, com câmeras lentas e poses angelicais na natureza) que ele deveria ter realmente começado. Quando a direção pode ter Cyntoia consigo, discorrendo sobre o passado, refletindo sobre si mesma com distanciamento, ele evita este caminho e se dá por satisfeito. Ao final, resta uma boa defesa do olhar humano aos prisioneiros, porém um retrato frágil da história específica da adolescente criminosa.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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