Crítica


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Sinopse

Selma é uma jovem francesa de origem argelina. Conforme entra na faculdade, começa a ter as suas primeiras experiências sexuais, enquanto os pais conservadores tentam impedir a libertação da garota. Enquanto isso, na terra de seus avós, o radicalismo islâmico toma conta das ruas.

Crítica

O sexo e a sexualidade constituem temas obsessivos deste drama. A abertura oferece animações etéreas e rosadas em formas de vulvas, enquanto a trilha sonora aposta num teor sensual. O doce mencionado no título representa uma maneira encontrada pela cineasta Kamir Aïnouz de introduzir um objeto fálico na boca de Selma (Zoé Adjani), adolescente que devora os charutos em câmera lenta. Quando ela retira o sutiã dentro de casa, em ato corriqueiro para a menina trocando de roupa, um sussurro lânguido toma conta da trilha. No trote de entrada da faculdade, é a única obrigada a ficar de quatro, na frente dos garotos, simulando os gemidos de um ato sexual e pedindo para ser penetrada. O primeiro rapaz que encontra na instituição, literalmente, se torna o parceiro provocador com quem ela inicia uma jornada erótica. Em casa, ela se masturba, escuta podcasts sobre sexo anal, e na escola, faz piadas sobre a quantidade de pintos que vai chupar, ou sobre a “falta de sodomia” no encontro de alunos. O roteiro não oferece muito descanso à heroína: cena após cena, ela será definida pela vontade, o medo e os traumas decorrentes de sua sexualidade, enquanto jovem privilegiada, porém controlada por pais árabes e conservadores.

Há um caráter libertador, decorrente da afronta aos costumes, nesta abordagem direta do tema em relação aos preceitos muçulmanos. Apesar de multiplicar os encontros com homens - a maioria deles, marcados por abusos e desilusões -, a diretora faz questão de preservar o corpo de sua atriz principal, sugerindo a nudez ao invés de explorá-la. Durante as numerosas cenas de ato sexual, a câmera permanece rigidamente focada no rosto dos participantes, deixando fora de quadro os sons e movimentos relativos ao ato. A diretora sustenta a aparência de subversão através de sua atriz principal, muito confortável nestas sequências, nas provocações verbais e mesmo nas incômodas representações de violência sexual. Zoé Adjani possui tamanha naturalidade com diálogos e com a postura corporal que permite à criadora focar a câmera em seu rosto e corpo durante a quase integralidade da trama. O ponto de vista permanece junto à adolescente de maneira incondicional: durante os jantares em família, ela será o centro das atenções, seja pelo posicionamento da câmera e os enquadramentos, seja pelo ímpeto da jovem em provocar todos ao seu redor, testando os limites do afeto paterno, materno e familiar em geral.

No entanto, os procedimentos refletem a mão pesada da direção, incapaz de inserir a descoberta sexual dentro de um processo amplo de amadurecimento. Selma manifesta poucos planos para o futuro, objetivos profissionais claros, ou opiniões a respeito de assuntos dissociados da política argelina. Após uma perturbadora sequência de estupro, a adolescente volta para casa e escuta um podcast sobre sexo. Embora se sinta objetificada e desprezada pelos garotos com quem dorme, torna a vê-los, de modo automático. Há pouco espaço para ela sentir a dor destes traumas, ou refleti-los em gestos cotidianos. As conexões afetivas com vizinhos e amigos são inexistentes na jornada desta estudante universitária que jamais estuda, nem cursa aulas. Aïnouz sabe bem de quais temas pretende tratar, porém sobrecarrega o roteiro de estímulos semelhantes, desprovidos respiro e ambiguidade. A utilização frequente dos sussurros e câmeras lentas etéreas remete a um imaginário desgastado da sexualidade e do erotismo, além de soar inapropriado as interações abusivas, atenuadas pelos gemidos de prazer. Ao priorizar as ações e a exteriorização dos sentimentos, a autora coloca em segundo plano os sentimentos íntimos, a exemplo da culpa e da inadequação após o estupro. 

Charuto de Mel (2020) cresce bastante quando decide, enfim, abrir-se a temas distintos da garota, inserindo-a num contexto social amplo. A viagem à Argélia, o contato com a avó e a percepção de outras possibilidades de emancipação feminina para além daquela, rebelde e brutal, da protagonista, serve a inserir este movimento de libertação dentro de uma tendência feminina maior do que Selma. A sugestão de que a mãe (Amira Casar) aprende algo com os gestos da filha, e esta descobre um novo lado de sua criadora, proporciona os melhores instantes da narrativa. A alusão à sororidade contribui, em paralelo, a dissociar as figuras adultas das funções estereotipadas em que se encontravam: a mãe deixa de ser a mulher excessivamente maquiada e histérica, preocupada demais com a opinião alheia, enquanto o pai (Lyès Salem) apresenta uma inédita fragilidade na terra de seus ancestrais. Aos poucos, Aïnouz permite que a jornada da mãe seja tão expressiva quanto aquela da filha, caso em que a libertação da matriarca retira da filha o peso de se revoltar contra o sistema. Diante da força desta médica convertida em dona de casa, Selma pode retornar à cômoda posição de filha.

Em se tratando de um primeiro longa-metragem, a obra revela a vontade de se confrontar a temas sem concessões às regras do cinema comercial, evitando atenuar a sucessão vertiginosa de encontros da protagonista com rapazes exploradores e dissimulados. O fato de se iniciar e se encerrar com a animação de vaginas serve de confronto, em si mesmo, com os preceitos de recato feminino, sobretudo em países islâmicos. A autora demonstra habilidade em trabalhar com o elenco, ainda que invista excessivamente nas cenas de catarse - as brigas, choros e gritos. Algo da rebeldia da menina de 17 anos se sustenta na abordagem da diretora adulta, que confessa ter levado às telas uma história autobiográfica. De fato, o drama parece impregnado de memória afetiva, repleta de ternura em alguns momentos, mas propensa a exagerar ou minimizar ações de acordo com o impacto que desempenharam na época e desde então. Há múltiplas formas de ruptura com os clichês para além da imagem de um consolo utilizado no defloramento de uma garota, mas a cineasta prefere esta concretização direta e explícita de seu tema. Ela enfrenta a sexualidade sem medo, mas também sem nuances, o que traduz tanto as qualidades quanto as fragilidades do projeto.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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