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Sinopse

Tentando assumir a Companhia Nacional de Sapatos, um executivo japonês hipoteca sua casa para levantar o dinheiro necessário. Todavia, esse montante pode pagar o resgate e salvar a vida de uma criança sequestrada.

Crítica

Ainda dentro do período considerado por muitos como seu auge criativo, Akira Kurosawa abandonou momentaneamente o universo dos samurais – após entregar mais dois clássicos do gênero em sequência, Yojimbo: O Guarda-Costas (1961) e Sanjuro (1962) – para se voltar à realidade contemporânea da época, o Japão da década de 1960, com Céu e Inferno, adaptação do romance policial King’s Ransom, do norte-americano Ed McBain. Se o cenário temporal muda, as questões morais de seus velhos guerreiros permanecem praticamente as mesmas, recaindo particularmente sobre o protagonista, Kingo Gondo (Toshirô Mifune em sua penúltima colaboração com o cineasta). Executivo de uma grande fábrica de sapatos, o personagem já surge em cena impondo seus princípios éticos ao defender a produção de sapatos de qualidade e duráveis, renegando, assim, a proposta feita por um trio de sócios de comercializar um produto de material menos resistente, produção mais barata e desgaste rápido, gerando a necessidade de novas compras e, consequentemente, mais lucros.

Contudo, não é na definição moral absoluta que o trabalho de Kurosawa opera, mas sim nos dualismos presentes desde o título. Ao mesmo tempo em que expõe a postura correta de Gondo em relação à produção de seus sapatos, o diretor também nos revela seus planos para assumir o controle da fábrica, hipotecando todos os seus bens para comprar as porcentagens de outros acionistas. O equilíbrio destas facetas – honestidade e ganância – é colocado à prova momentos após Gondo expulsar os três sócios de sua casa, quando recebe o telefonema de um homem que afirma ter sequestrado seu filho, Jun, exigindo o pagamento de um resgate milionário. A decisão imediata de atender às exigências do sequestrador, porém, muda minutos depois, quando Jun reaparece revelando o erro cometido pelo bandido, que acaba raptando o filho de Aoki (Yutaka Sada), motorista de Gondo.

Durante toda a primeira metade do longa, Kurosawa constrói a representação do Céu do título, na forma da imponente mansão da família Gondo, com suas paredes de vidro, localizada no alto de uma colina. É nesse cenário que se dá o processo de negociação, originando o dilema fundamental do empresário: colocar em risco a vida de uma criança ou pagar o resgate astronômico indo à falência? Kurosawa joga habilmente com a criação dessa expectativa, bem como com o intuito maior do sequestrador, sugerindo que todos – do assistente ambicioso e dos sócios contrariados ao próprio Gondo – podem estar envolvidos. O diretor vai e volta, atravessando os dois lados dessa linha turva, sem deixar claras as intenções dos personagens, enquanto o protagonista alterna seu posicionamento influenciado pelas reações daqueles à sua volta – a solidariedade da esposa, a angústia do motorista, o esforço da polícia – sem, contudo, julgar essa volatilidade.

A encenação dessa parte inicial carrega ares teatrais, quase toda realizada num único cenário – a sala da mansão – com Kurosawa demonstrando seu senso de ambientação apurado, trabalhando com enquadramentos rebuscados que exploram ao máximo a horizontalidade da janela widescreen, posicionando meticulosamente todos os personagens em cena para compor verdadeiras pinturas em peto e branco – as cores só são utilizadas, de modo preciso, em um momento-chave. A partir da decisão final de Gondo, inicia-se a segunda parte, bastante distinta, do longa, com a gradativa descida ao Inferno. A placidez dos planos dá lugar ao dinamismo e a efervescência, a começar pela engenhosa sequência dentro do trem. Neste ponto, as questões morais relacionadas a Gondo são ligeiramente abandonadas, com uma percepção quase unânime sendo compartilhada por policiais, imprensa e opinião pública. Com isso, Kurosawa aproveita para adentrar aquilo que lhe parece ser mais interessante, o detalhado processo investigativo.

Cada descoberta é registrada com grande paixão pelo diretor, tendo como ápice a sequência primorosa da reunião do batalhão na delegacia – que basicamente dita as regras que depois seriam seguidas por quase todas as narrativas de filmes e seriados policiais procedurais –, onde cada dupla de investigadores apresenta uma nova peça do quebra-cabeça. Um trabalho de montagem notável, que serve também para amplificar geograficamente o universo da trama para fora da bolha da alta sociedade representada pelo castelo/mansão do “rei”.  No ato final, a maestria de Kurosawa é reforçada, quando este mergulha de vez na representação de Inferno com a longa sequência da tocaia ao sequestrador no centro da cidade. Executando um verdadeiro balé de movimentos, de pedestres e carros, com direito a dança e música mesclada aos sons das ruas, num jogo de luzes e sombras, reflexos e espelhos, Kurosawa exibe uma construção de grande requinte visual, na qual a artificialidade da encenação teatral do inicio se funde ao realismo bruto com naturalidade.

Assim, o cineasta imprime ao clímax de Céu e Inferno uma atmosfera de tensão sufocante, na qual o calor e umidade marcados no suor das camisas dos policiais disfarçados pode praticamente ser sentido pelo espectador. Tal qual o desespero da passagem pelo “Purgatório”, no beco sombrio dos viciados em heroína que vagam como mortos-vivos. No contraste entre as duas partes do longa, Kurosawa traz a questão social do conflito de classes, que se torna mais aguda no desfecho, em que a separação entre esses mundos se dá por uma simples grade. Sem buscar justificar atitudes, continuando a operar na citada área cinza de valores morais, Kurosawa mostra, com domínio pleno sobre tal mensagem, que a distância entre heróis e vilões pode estar em uma mera questão de oportunidade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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