Crítica


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Sinopse

Em 2018, Shannan Watts e as duas filhas pequenas desapareceram sem deixar vestígios. O marido lança um apelo a qualquer pessoa que tenha informação sobre a esposa e as filhas. Começa uma investigação criminal que choca os Estados Unidos.

Crítica

Em Garota Exemplar (2014), uma mulher desaparece. Ela aparentava viver um relacionamento perfeito ao lado de um homem perfeito. O casal não tinha problemas financeiros, e aparentava ser feliz. Eles esperavam um bebê. Todas as suspeitas recaem sobre o marido, acusado de demonstrar poucos sentimentos diante de um momento de desespero. Seria um psicopata frio e perigoso? Com esta premissa, baseada no livro homônimo de Gillian Flynn, o diretor David Fincher criou um suspense excelente, repleto de viradas inesperadas. O documentário Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha (2020) possui um ponto de partida idêntico: desaparecimento, família bela e feliz, suspeitas sobre o marido. A diretora Jenny Popplewell decide criar seu próprio Garota Exemplar, conduzindo o espectador por um suspense empolgante. O filme questiona o espectador a cada instante: o que teria realmente acontecido? A mulher teria fugido sozinha? O marido seria o responsável? Somos convidados a participar do jogo de adivinhações por meio de uma montagem fragmentada que oculta informações essenciais, entregando-as ao espectador apenas no clímax.

No entanto, existe uma diferença essencial entre os dois exemplos. Em se tratando de um documentário, a cineasta possui uma responsabilidade ética muito diferente com o real, em relação aos personagens perversos de Gillian Flynn. Popplewell aborda um crime recente, que aconteceu de fato, e se tornou um assunto comentado em todos os veículos de imprensa norte-americanos. (Há pelo menos dois outros filmes sobre o caso, aliás). As pessoas sabem o que aconteceu no final: Chris Watts assassinou a esposa e as suas filhas, despejando-as num campo aberto e então encenando o papel do marido triste, torcendo pelo retorno da esposa desaparecida. Por que ocultar esta informação do público até o terço final? Por que conduzir a narrativa como se o filme tivesse descoberto, junto do espectador, a verdade sobre os homicídios? Caso o projeto cinematográfico ocorresse enquanto os fatos fossem apurados, o teor de descoberta gradual se justificaria (como é o caso de Eu te Amo, Agora Morra, 2019). Ora, a cineasta constrói seu quebra-cabeças depois que os fatos estão concluídos, quando Watts está preso e condenado à prisão perpétua após confessar as três mortes.

A postura mais honesta diante de um assassinato tão bárbaro seria revelá-lo enquanto tal ao espectador desde o início, para então buscar a compreensão de como aquele desfecho trágico teria ocorrido. Esta seria uma mudança significativa de abordagem, entre a compreensão a posteriori e a revelação “ao vivo”. Por este motivo, quando os letreiros finais alertam sobre a gravidade dos feminicídios nos Estados Unidos, o aviso soa hipócrita. Afinal, a temática do filme nunca foi a agressão contra mulheres: até os últimos trinta minutos, ainda se sustenta a possibilidade de inocência de Chris Watts. A montagem prefere equilibrar o ponto de vista de ambos os lados para sustentar o suspense. Para quem ainda não conhece a história, existem indícios tanto de um possível crime do marido quanto de uma fuga da esposa. A edição efetua diversas idas e vindas no tempo: chegando perto do julgamento, resolve revelar dados fundamentais que haviam ocorrido três dias antes das mortes. Obviamente, o filme poderia ter apresentado estas informações desde o início, para então mergulhar na psicologia do criminoso. Entretanto, nunca se compreende exatamente por que Chris Watts assassinou a esposa e as filhas. Este não constitui o interesse central da diretora.

O ponto de vista prefere ficcionalizar ao máximo a história real, embaralhando as peças temporais, ocultando símbolos importantes (as últimas trocas de mensagem entre o casal), aplicando uma trilha sonora assustadora e mesmo revisitando trechos apresentados inicialmente, para o espectador descobrir uma vez mais o falso teatro do marido preocupado. Popplewell procura a maneira de tornar o episódio mais empolgante e tenso para o espectador. Ora, deveríamos realmente ser entretidos diante de um crime bárbaro que destruiu uma família e levou a uma onda de bullying e slut shaming com os familiares? Seria correto se apropriar do sofrimento alheio para mexer com os nervos do público assistindo ao caso na segurança em suas casas? Em última instância, este filme muito bem produzido sob o selo Netflix desperta um questionamento ético semelhante àquele imposto por programas policiais sensacionalistas da televisão: que direito nós temos de transformar a tragédia dos outros na nossa diversão? Talvez este seja o melhor exemplo da diferença ontológica entre ficção e documentário: quando tememos pelo destino da “garota exemplar” de David Fincher, sabemos que nada aconteceu a Rosamund Pike: a atriz segue viva e segura. Há o fundamental pacto de suspensão da descrença, permitindo ao espectador desfrutar de uma mentira verossímil. O documentário, no entanto, possui uma responsabilidade estrita com a realidade.

Talvez o melhor aspecto de Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha decorra de sua leitura enquanto sintoma de uma época. O projeto é inteiramente construído com imagens de arquivo, tanto com filmagens dos policiais, que possuem câmeras em seus uniformes, quanto nas delegacias, mas principalmente gravações caseiras efetuadas pela própria Shannan Watts com as filhas e o marido. A diretora não necessita efetuar nenhuma captação por conta própria: ela tem acesso a uma intimidade espantosa dos personagens reais devido ao material que eles produzem e disponibilizam publicamente nas redes sociais. A vítima não dava um passo dentro de casa sem gravá-lo com a câmera, e depois compartilhar o vídeo. A experiência diante desta narrativa se assemelha àquela produzida por um filme de terror em found footage, quando os personagens filmam a si mesmos, e as gravações (fictícias, no caso) são encontradas após um crime. Costuma-se reclamar de filmes como A Bruxa de Blair (1999), REC (2007) e A Forca (2015) sobre a câmera ligada o tempo inteiro: o que justificaria que os protagonistas não interrompessem as imagens mesmo quando estão correndo perigo? A geração de Shannan Watts responde a essa pergunta. Hoje, tornou-se plausível que a imagem esteja virada sobre os nossos próprios rostos sem parar, e que toda ação privada possa (e deva) se tornar pública. O feminicídio constitui um elemento perturbador desta história, mas ele não é o único.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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