Crítica


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Sinopse

Celeste já foi uma das sopranos mais promissoras no cenário musical, mas abandonou a carreira em nome de um amor. Após a morte deste homem, ela vive em decadência, abusando de álcool e remédios, enquanto os amigos tentam fazê-la retornar aos palcos. A situação se transforma quando Celeste recebe a visita de Jack, um rapaz que não via há muitos anos.

Crítica

À primeira vista, Celeste (2018) traz algumas das configurações mais clássicas dos dramas e romances. Existe a premissa do jovem sedutor chegando a uma cidadezinha para arrebatar o coração das moradoras locais. Há a narrativa de uma diva decadente, tão talentosa quanto instável emocionalmente, preparando-se para o retorno aos concertos públicos. Em paralelo, adota-se o conflito de uma pessoa querida sofrendo de uma doença terminal, cercando-se de familiares para se despedir, além de uma tragédia no passado capaz de reunir duas pessoas. A surpresa decorre da junção destes elementos numa única narrativa. Como condensar as múltiplas linhas narrativas de maneira orgânica? O diretor Ben Hackworth estabelece uma coesão através dos espaços e do tom. A narrativa se passa inteiramente numa mansão tropical, parcialmente em ruínas, em meio a uma floresta australiana. Os personagens entram e saem do casarão, no entanto a câmera permanece pelos quartos abafados, corredores abertos e jardins labirínticos. Ao invés de fazer com que os personagens circulem por múltiplos cenários, o filme prefere atrai-los a um espaço único.

O resultado funciona em sua junção de luxo e decadência – uma metáfora adequada para representar a protagonista. Celeste (Radha Mitchell) carrega a personalidade extravagante de uma grande celebridade, porém sem a fama de antigamente, nem os dotes vocais do auge da carreira. Após um momento de luto, a cantora parou de cantar, atribuindo a aparência de inércia e inutilidade à grande equipe que a cerca. Para que servem produtores, assessores e agentes de uma artista sem arte? A narrativa explora a irônica aparência de agitação (as pessoas correm para planejar a apresentação) e marasmo (a soprano quase nunca ensaia e dá indícios que será incapaz de cantar). O projeto se articula em torno das possibilidades de que tudo e nada aconteça: anuncia-se tanto o caos quanto o tédio. A chegada de Jack (Thomas Cocquerel) reforça esta situação: a presença do jovem é simultaneamente desejada (Celeste o convidou) e indesejada (ela o despreza, o ignora). O rapaz transforma a configuração do local, apesar de não desempenhar, concretamente, nenhuma ação ali dentro. O cineasta sabe trabalhar com este contraditório jogo de sugestões.

A leitura mais interessante a partir deste cenário se encontra nas relações edipianas entre Celeste, a madrasta, e Jack, o afilhado. A última vez em que os personagens haviam se encontrado tinha sido na infância do garoto, quando nutria evidente atração sexual pela mulher livre. Agora, o jogo se inverte: ele é um adulto, atraente, perto de uma mulher mais velha, em estado de descuido pessoal. Hoje, ele se parece com o pai, por quem a cantora já foi apaixonada. Hackworth aproxima esta mistura de idílio e pesadelo de uma tragédia grega, onde o pai, uma vez eliminado, abre as portas para a consumação simbólica do desejo pela mãe. O roteiro astucioso vai além, ao fornecer um segundo triângulo amoroso envolvendo a jovem Rita (Odessa Young), que relembra o forasteiro de sua madrasta quando jovem. Celeste, personagem-título, constitui um símbolo: ela se espelha na atendente de uma loja e também na melhor amiga, passando-se por ela durante uma entrevista indesejada. “Por que você usa essa peruca ridícula?”, pergunta Jack, ao que a soprano responde que isso faz parte do personagem. A cantora veste a máscara de uma persona fictícia para disfarçar a fragilidade interna.

A australiana Radha Mitchell, que passou por um período malsucedido de adaptação em Hollywood, se mostra confortável neste tipo de produção independente, priorizando a psicologia dos personagens e o jogo cênico. Embora a direção se repita na exploração dos cenários, o elenco encontra boas oportunidades de transformar as peças do jogo, a ponto de não sabermos quem detém o controle sobre quem, entre Celeste e Jack. Thomas Cocquerel e Odessa Young também cumprem de maneira satisfatória os seus papéis, ostentando um erotismo jovem e despojado, em consonância com a direção avessa à exploração excessiva dos corpos. Eles caminham com roupas largadas e suadas, através de cenários multicoloridos, vaporosos, mistura de floresta encantada e pântano assustador. A direção de fotografia consegue oferecer um aspecto tão acolhedor quanto hostil desta mistura de casa e teatro, propriedade de luxo e casa caindo aos pedaços. Dentro da trama quase inteiramente diurna e a céu aberto, cria-se uma sensação de claustrofobia e inevitabilidade (digna das tragédias, vale dizer). Mesmo os sons de natureza navegam entre o realismo e o sonho-pesadelo.

De modo geral, o cineasta se sai melhor quando pode sugerir interações, enfraquecendo as cenas quando precisa materializar atitudes rumo ao desfecho. O talento de Celeste enquanto cantora soa questionável (é difícil acreditar que a atriz esteja cantando de fato), ao passo que a grande revelação do passado se oferece de maneira repentina. Depois de tanto ocultar informações, o roteiro estima que já aguardou o suficiente, e simplesmente conta ao espectador tudo de que precisa saber. Em consequência, algumas relações intricadas até então se tornam simples demais. Por um lado, a narrativa sabe trabalhar de maneira instigante com a frustração de expectativas (vide o clímax, com o show de Celeste). Por outro lado, deixa de resolver questões fundamentais, sobretudo relacionadas ao pai/marido. Devido à escolha de reter informações preciosas até a reta final, o projeto ganha em suspense, porém perde em densidade dramática. No entanto, proporciona um belo passeio por uma galeria de personagens ambíguos, parte admiráveis, parte detestáveis.

Filme visto online no Especial 10 Anos do Festival Internacional de Cinema em Balneário Camboriú, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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