Crítica

João Castanha nos é apresentado na primeira cena do filme. Coberto de sangue, caminha nu em direção à câmera, como que tomado pelos ferimentos. Ferimentos aparentemente externos, frutos de uma violência física, a se revelar, durante o decorrer do filme, causada pelas próprias condições da vida escolhida.

Castanha, primeiro longa-metragem de Davi Pretto, nos conta a rotina do João Castanha (interpretado pelo próprio), ator e animador de espetáculos na noite de Porto Alegre. Entre uma apresentação e outra, somos levados ao mundo do protagonista. Com uma mistura de documentário e ficção, o longa aposta em uma linguagem cinematográfica não tradicional. A câmera, como um espectador esquecido, pouco ou nada se movimenta – a cena inicial é uma exceção. Os diálogos, simples e naturais, insistem em codificar o gênero.

Através dessa estética flutuante, por várias vezes perturbadora, somos levados ao íntimo de João. Do contrastante dia, geralmente pacato, para o turbulento, algo sombrio, mundo da noite; a relação com a mãe e com o sobrinho viciado em crack. É com esse ingrediente familiar, trivial, que o diretor erige o seu monumento.

Se nos filmes de ação o perigo está nos outros, em Castanha é a proximidade que conduz ao perigo. De tanto medo da morte, João praticamente a admira, como se soubesse que nela reside um recanto pacífico para as circunstâncias que já não pode mais evitar – o pulmão tomado pelo tabaco, o corpo frágil da bebida, as ameaças do sobrinho; espinhos físicos e psicológicos.

Castanha pode ser um longa, mas nada o define melhor quanto a cena de abertura. O corpo despido e ensanguentando é a marca indelével em cada minuto do filme. Poderia ser o seu final, mais apoteótico e macabro. Poderia estar no meio, como a cena em que vemos a mãe igualmente ensanguentada. Poderia e o é, em certa forma, à medida que representa toda a força da narrativa de Pretto.

Guiando o espectador para o mundo – que, como todo interior, é submundo – de Castanha, o filme constrói a si próprio em um percurso que simplesmente simula ser aleatório e enevoado. Com uma trama dura, a paisagem de Castanha é opaca e desafiadora, uma experiência inevitável diante de quem não fez da vida um refúgio, mas espaço de puro acontecimento – da verdadeira e singular atuação.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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