Crítica


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Sinopse

Cássia Rejane Eller. Cássia Eller. Cássia. Uma poderosa força inquieta no palco, a timidez em pessoa fora dele. Um dos grandes nomes da música brasileira, Cássia Eller marcou a década de 1990 e chocou o país com sua morte precoce, em 2001. Um filme sobre a cantora, a mãe, a mulher que expôs sua vida pessoal e rompeu barreiras, deixando um belo legado social e artístico.

Crítica

Cássia Eller não gostava de dar entrevistas, se intimidava. Também por isso, boa parte da imagem que se tem dela é apenas o estereótipo colado no imaginário popular. Irascível no palco, local sagrado onde libertava seus demônios, era, contudo, geralmente tranquila e afetuosa em seus relacionamentos privados, lado que ficou longe do público. O diretor Paulo Henrique Fontenelle conta que se apaixonou pela figura de Cássia, além do aspecto musical, justamente por essa contradição, pela disparidade entre seus comportamentos artístico e cotidiano. Também lhe incomodava o superficial, por isso buscou saber durante o processo de Cássia Eller bem mais a respeito dessa iconoclasta que unificou guetos musicais e derrubou alguns tabus, mesmo depois de morta.

Há o cuidado da abordagem plural, sem preocupações em esconder o consumo de drogas, os casos extraconjugais, enfim, os excessos. Cássia é retratada como uma garota tímida que entrou de cabeça na música, encontrando no palco seu conforto. Fora dali era outra, não gostava de promover o próprio trabalho e preferia plateias menores às grandes nas quais não distinguia os rostos. Fontenelle, pouco a pouco, em meio a imagens de arquivo e depoimentos de gente que viveu muito próximo dela, constrói uma figura palpável, humana, feita tanto da cantora famosa pela atitude quanto da pessoa “normal”, com os mesmos anseios da maioria. À frente, Cássia derrubava barreiras apenas sendo, sem hastear bandeiras ou bradar aos quatro cantos suas vontades e verdades.

Além da sensibilidade, Cássia Eller possui um aspecto visual muito interessante, pela maneira inteligente como Fontenelle (ele também o montador) agrupa registros de shows, entrevistas, vídeos caseiros, e, com grau de importância semelhante, o videografismo a cargo de Renato Vilarouca e Rico Vilarouca, expediente muito bem executado que confere tridimensionalidade às fotos. Claro, sonoramente a viagem é tão rica quanto. Acompanhar o desenvolvimento de Cássia Eller como artista atenta à sua versatilidade, vide a gradativa passagem dos primeiros momentos, em que se expressava essencialmente por meio do rock, às experimentações posteriores com samba e outros ritmos menos óbvios à expectativa que recaia sobre ela.

Mas, se Cássia Eller é muito feliz ao ressaltar o humano, alcança notas ainda mais altas quando expõe sua visão acerca da importância, inclusive social, da artista. Cássia cantava em lugares menores, no auge da fama, apenas por prazer; não teve vergonha de assumir o casamento com Eugênia, falando para quem quisesse ouvir que, sim, era homossexual; quebrou mais um paradigma ao engravidar porque, sim, queria muito ser mãe, entre outras condutas que a colocaram na vanguarda, mesmo que ela nunca tenha reclamado tal posição. Isso não impediu que boa parte da mídia vilipendiasse sua memória tão logo o coração tenha lhe falhado. Aliás, nisso o filme também se sai muito bem, nesse comentário oblíquo sobre o papel da imprensa.

Talvez um dos maiores desafios das cinebiografias seja mesmo resistir à tentação de varrer para debaixo do tapete passagens que podem virtualmente prejudicar a identificação do público com o biografado. Paulo Fontenelle não teve receio de explorar Cássia Eller, de extrair sua essência ao abranger fraquezas, falhas, equilibrando-as com as virtudes, que não eram poucas. Se no palco Cássia era um vulcão, na vida particular se sobressaia sua ternura e a vontade de estar bem junto aos seus. Cássia Eller não santifica e não demoniza, utilizando nuances e complexidades para traçar um painel amplo que nos apresenta, primeiro a pessoa que sustentava o ídolo, e depois o ídolo que exorcizava a pessoa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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