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Crítica

Antes de se tornar um dos maiores nomes da literatura portuguesa contemporânea, sendo constantemente listado como provável candidato ao Prêmio Nobel, o escritor e psiquiatra lisboeta António Lobo Antunes, responsável por obras como Memória de Elefante e Conhecimento do Inferno, foi destacado como médico do exército durante o período final da Guerra Colonial Portuguesa, ficando baseado em Angola entre 1971 e 1973. Ao longo destes anos de serviço militar, o aspirante a autor escrevia, avidamente, cartas para sua primeira esposa, Maria José, que deixara, grávida, em sua terra natal. Anos mais tarde, as correspondências acabaram compiladas, dando origem ao livro D'este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra, que serve como base para Cartas da Guerra, terceiro longa-metragem do cineasta Ivo M. Ferreira.

Com um rico conteúdo em mãos, Ferreira assume uma tarefa complexa: materializar em imagens a escrita densa, e extremamente íntima, de Antunes e, ao mesmo tempo, retratar a experiência da guerra com todos os diferentes aspectos que envolvem esse episódio traumático da história recente de Portugal, já visitado pelo cinema do país através de diversos realizadores, incluindo o maior deles, Manoel de Oliveira, em Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990). Ferreira inicia a jornada de Antunes (Miguel Nunes) com seu embarque para Angola, uma terra onde “tudo é grandioso, hiperbólico”, onde o excesso do verde – das fardas, dos carros camuflados, das tendas, da paisagem – rapidamente começa a cansar o jovem médico. Esse tédio que acomete os soldados emana dos momentos que cercam o combate, a ação de fato, e compõem a maior parte do longa.

Ferreira, porém, não abandona a sensação de tensão, do perigo sempre a espreita, pois o ócio é rompido por situações como o sorteio para escolher quem sairá à procura de minas terrestres, ou as emboscadas e ataques noturnos. Contudo, é mesmo na noção de estagnação do tempo, que só faz elevar a estafa psicológica dos soldados, que a narrativa de Cartas da Guerra se fundamenta, permitindo a adoção de um olhar mais contemplativo. Uma abordagem que, de modo quase inevitável, evoca o trabalho de Terrence Malick em Além da Linha Vermelha (1998), mas sendo capaz de se distinguir por suas particularidades – culturais, históricas – captadas com sutileza, como quando o batalhão acompanha uma partida do Benfica ao rádio ou quando encontram na arte, no cinema, com olhos grudados na tela e lábios que repetem as frases decoradas do filme luso revisto várias vezes, uma fuga momentânea dos horrores da guerra.

Apesar de trazer suas reflexões sobre a empreitada militar, Ferreira tem no cerne de sua obra uma história de amor. Um romance epistolar cuja força contida na prosa febril de Antunes faz com que transmita uma intensidade física, mesmo com a distância separando o casal. O ardor da paixão, o desejo do sexo, podem ser sentidos nas juras de amor, até ao fim do mundo e dos tempos, do escritor, e que Ferreira, habilmente, complementa imageticamente, como na bela sequência em que Antunes apresenta uma extensa lista de adjetivações para sua amada Maria (Margarida Vila-Nova) sobreposta a vislumbres dos corpos de cada um na cama. Um dos melhores exemplos da capacidade do diretor em ilustrar um enredo dominado pela palavra, no qual a narração em off deixa de ser elemento de apoio para assumir função primordial.

Dona da voz que imprime cadência às cartas – exceto em passagens pontuais, como no derradeiro plano do longa – Maria surge sempre como uma efígie projetada pelo marido. Uma lembrança idealizada, quase fantasiosa, que serve à busca de Ferreira pelo lirismo das imagens que, felizmente, não se mostram meras representações literais do texto original – minuciosamente selecionado e editado por Ferreira e pelo co-roteirista Edgar Medina. Essa qualidade poética é elevada pela estonteante fotografia em preto e branco de João Ribeiro, com contrastes acentuados valorizando as sombras e seu poder na criação de auras distintas: da letargia dos corpos estirados no navio a caminho de Angola, da melancolia mesclada ao pavor no plano que percorre as trincheiras, da angústia em ponto de ebulição de Antunes frente ao céu negro e trovejante.

Adotando uma visão centralizadora, a do autor, e tendo sua adoração por Maria como elemento imperante, Ferreira oferece menos espaço para tratar de outros temas – políticos e sociais – porém, não foge completamente de tais questões. Por mais que a guerra gere sentimentos conflitantes – a certa altura, Antunes diz compreender Che Guevara e desfrutar da adrenalina do combate – o discurso geral é, decididamente, antibelicista, tratando o conflito como um erro, um sacrifício em vão de uma geração. Algo explicitado nas conversas de Antunes com o capitão durante partidas de xadrez, ou quando afirma à esposa estar se posicionando “cada vez mais à esquerda”. Ao final, contudo, é mesmo o amor que prevalece em Cartas da Guerra. A noção de que apenas um sentimento com tal poder é capaz de fazer suportar o desespero e a saudade, até de quem não se conhece, caso de Antunes em relação à filha – a cena do anúncio do nascimento da menina é tocante. A crença no amor como a última arma restante para a sobrevivência, que se impõe sobre qualquer adversidade.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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Grade crítica

CríticoNota
Leonardo Ribeiro
8
Robledo Milani
7
MÉDIA
7.5

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