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Sinopse

Desde que seu marido foi preso, Hala tem que enfrentar seus pensamentos suicidas sozinha. Sua força tem que vir de dentro, pois a sociedade não a ajuda e nem perdoa uma mulher deprimida, principalmente por ela ser mãe.

Crítica

Este drama parte do retrato de uma sociedade doente. A capital do Egito é vista como uma metrópole de pessoas atarefadas, angustiadas, reclamando do tráfego, executando trabalhos de que não gostam, vivendo com pouco dinheiro e se esforçando para corresponderem às rígidas regras morais. Neste sentido, Cairo não se distancia tanto de qualquer outra cidade de grande porte, no Ocidente ou Oriente. Os personagens que povoam a narrativa estão invariavelmente estressados, seja o marido com seu asfixiante emprego numa agência bancária, a prima que sonha em se casar em segredo com o homem que ama, a adolescente revoltada e órfã, e especialmente Hala (Basma), nossa heroína, antiga professora de colégio, sofrendo de uma depressão crônica, e buscando um tênue equilíbrio entre a tendência suicida e os cuidados diários com o bebê.

A atriz possui uma tarefa delicada em mãos, por interpretar uma figura pouco simpática a princípio. Mesmo com a presença do marido carinhoso e a cumplicidade da prima, a personagem ainda se sente distante, incomodada, ora apática, ora agressiva. Basma não mede esforços para construir esta mulher multifacetada, sem amor real pelo bebê nem por qualquer outra pessoa – muito menos por si própria. Ao contrário da visão estereotipada da depressão como um oceano de choros e prostração, Carta Registrada representa a doença de modo realista, permitindo oscilações de humor e momentos de desejo sexual intenso, permeados por uma sensação constante de inadequação. Hala não tem prazer em ser mãe, esposa nem mulher naquela sociedade, e por isso será julgada severamente pelas línguas alheias. O primeiro longa-metragem do jovem diretor Hisham Saqr ataca diretamente a suposta predestinação da mulher à vida doméstica e à maternidade.

De fato, toda a narrativa se desenvolve a partir das mulheres. Quando o marido de Hala literalmente sai de cena, detido numa prisão por fraude fiscal, esta personagem passa a carregar o peso da autonomia que nunca foi dada, de fato, à parcela feminina da sociedade egípcia: ela precisa cuidar sozinha da casa, do bebê, das contas, e da própria depressão que a faz engolir uma quantidade exagerada de remédios de vez em quando. O filme adota um estilo cru para este retrato: as imagens possuem pouca cor, as luzes de lâmpadas dentro das casas reforçam a impressão de cansaço e escuridão, os cortes bruscos da montagem ignoram as graves consequências das ações apenas para mostrar que, mesmo após uma tentativa de tirar a própria vida, é preciso voltar do hospital e cuidar do bebê. Em determinados momentos, o drama poderia ser mesmo considerado perverso, pelo acúmulo de problemas externos que deposita sobre os ombros de uma figura frágil retratada em asfixiantes close-ups.

Neste território naturalista, Saqr introduz pequenas metáforas pontuais para representar o desarranjo da vida doméstica: a bituca de cigarro que queima um tapete, a costura do sofá se desfazendo em virtude dos tiques da protagonista. Mesmo assim, a narrativa demora a introduzir qualquer forma de metáfora potente, capaz de transformar os rumos do filme. A “carta registrada” do título aparece apenas depois de 60 minutos de projeção, trazendo uma correspondência anônima de outra mulher, relatando problemas estranhamente semelhantes aos seus. Seria ela mesma escrevendo? “Todo mundo tem problemas”, argumenta a irmã mais nova de Hala, em sugestão de que aquela carta tão familiar poderia espelhar a vida de qualquer outra mulher. O diretor não explora este recurso em profundidade, porém consegue retirar das cartas uma poesia singela, espécie de comunicação afetuosa entre interlocutoras anônimas. Em algum outro lado da cidade, outra voz como a sua pede ajuda para aguentar um dia a mais, para sobreviver até a noite e repetir tudo de novo no dia seguinte.

Carta Registrada se encerra como um retrato bruto da depressão, marcado por um otimismo amargo, do tipo que encoraja as pessoas a seguirem adiante mesmo sem terem motivos reais para tal. O discurso final, uma ode à resiliência, reforça que “paciência é força” e “o medo da escuridão é passageiro”. Respire fundo, aguente um pouco mais. O cineasta não facilita a vida para sua protagonista, tampouco para o espectador, evitando qualquer forma de catarse ou escapatória. “Achei que eu estivesse melhorando e que os pensamentos suicidas não voltariam”, culpabiliza-se a protagonista durante uma recaída, numa exposição tão didática quanto franca de sua condição. Por fim, o projeto se inscreve na linha de Adam (2019), Primavera em Casablanca (2017) e Cairo 678 (2010) no enfrentamento político ao sistema patriarcal em sociedades árabes, descolando a mulher de uma posição submissa diante dos pais, maridos e irmãos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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