Crítica


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Sinopse

Assim como tantos, Jane e Carlos são atraídos a Nova Iorque pela promessa de uma vida melhor. A jornada deles representa o caminho árduo de todo imigrante em busca de um lugar ao sol nos Estados Unidos.

Crítica

É curiosa a maneira como Calidris (2019) parece negar a si mesmo conforme o filme avança. Há muitos estilos cinematográficos dentro deste projeto, muitas visões de mundo dentro da mesma obra. Seria cômodo organizar o resultado dentro da gaveta do cinema “experimental”, termo amplo demais, utilizado popularmente para descrever tudo aquilo com o que não sabemos lidar. No entanto, visto por suas partes distintas, o projeto pouco teria de experimentação propriamente dita, no sentido de brincar com texturas de imagem, dilatação/aceleração temporal, perturbações na representação e alterações/expansões do sentido imediato. Talvez a experimentação decorra apenas da colagem inesperada entre tantos elementos heterogêneos, ou seja, da surpresa de vê-los lado a lado, coabitando numa obra autônoma. A narrativa se assemelha à experiência de assistir a uma cena de humor pastelão colada a um terror sanguinolento, culminando num duelo de faroeste. Isoladamente, estas linguagens não trariam nenhum impacto dentro de seus gêneros habituais – a curiosidade nasceria da justaposição das peças.

Durante aproximadamente 25 minutos, a obra bebe na fonte dos formalistas europeus contemporâneos ao mostrar um casal de brasileiros acordando de um cochilo num parque de Nova York. Os planos fixos e rigidamente enquadrados permitem o silêncio, a contemplação e a quebra de expectativa em relação ao conflito. Ao filmar as pernas da dupla de imigrantes e valorizar o cenário ao invés dos corpos, o diretor Peter Azen aproxima seu trabalho da cinematografia austera e instigante de Angela Schanelec. Passado este momento, no entanto, o ritmo muda por completo. O roteiro começa a permitir pequenas performances messiânicas nas ruas, nas quais as pessoas gritam aos ares (“Isso é o Terceiro Mundo!”), ou então atuações dentro do apartamento, sobre um fundo de projeções, intercaladas com gestos cênicos de aparência improvisada, e com discursos políticos um tanto explicativos (“O que a gente está fazendo aqui [nos Estados Unidos] para contribuir à política do Brasil?”). Em determinado momento, a atriz principal começa a narrar sua experiência no país distante, em tom documental. Logo depois, outro ator fornece a caricatura tragicômica do empresário arrogante e corrupto, que pretende vender a Amazônia.

Todos estes registros seriam igualmente pertinentes num filme sobre o não-pertencimento e o olhar estrangeiro. No entanto, a fricção entre eles beira progressivamente a aleatoriedade. Em termos discursivos, Calidris não apresenta um ponto de vista desenvolvido sobre a imigração, nem sobre o “perrengue” que os protagonistas dizem passar em Nova York. Embora dediquem seus dias entre empregos precários, ainda moram em casas confortáveis, bem localizadas, tendo a possibilidade de voltar ao Brasil quando bem entenderem, além de descansarem nos parques locais. Eles se assemelham menos aos imigrantes em extrema necessidade financeira, precisando sustentar familiares e se sujeitar à exploração de patrões, do que um grupo de artistas buscando uma experiência nova, tentando “encontrar a si mesmos”. Não há nada errado no exílio voluntário, ou na busca por experiências novas, no entanto, o retrato se torna questionável quando passa a ser a única forma de imigração visível em tela. Estranha-se que a dureza de ser estrangeiro provenha da fala de uma jovem que está há apenas seis meses no país. Estranha-se ainda mais que, na cena final, uma artista negra lembre o racismo no Brasil e nos Estados Unidos. Ora, a questão racial, geográfica ou de classe nunca havia realmente aparecido até então. A cena soa como um pensamento a posteriori, embutido às pressas na conclusão do projeto – e não por acaso, tem seus próprios créditos dentro do filme.

Diversos elementos transmitem semelhante impressão de terem sido colados não para criar uma continuidade em relação à cena anterior e posterior, nem para reforçar os sentidos das cenas vizinhas, e sim para dinamitar as sequências adjacentes. A presença amigável da cineasta Paula Gaitán, interpretando a artista que só pensa no dinheiro (“Cinema não é conceito, é produto”) poderia nos encaminhar a uma discussão sobre o metacinema, sobre a precariedade enquanto linguagem artística, algo que, infelizmente, não se desenvolve. A certa altura da trama, Peter Nizen, no papel principal, abandona os outros personagens para fornecer uma sequência de performances solitárias, correndo na rua, dançando e cantando dentro de casa ou subindo e descendo escadas. Mais tarde, estes registros cessam. As conversas iniciais, espécie de mea culpa da burguesia que têm condições de viajar, discorrendo sobre os motivos que os mantêm num país estrangeiro, tampouco ganham continuidade. A estrutura se satisfaz com a própria fragmentação, com a superpotência de colar o que bem entender, sem necessariamente fazer com que as linguagens ou discursos dialoguem entre si. Alguns exercícios de linguagem atingem a autoria ensimesmada: faço porque posso.

Em 2016, Muito Romântico efetuava um retrato análogo de brasileiros no exterior. Tratava-se de outra obra “experimental”, comandada por um casal, contrapondo a vivência no Brasil e na Europa. No entanto, as subversões de Melissa Dullius e Gustavo Jahn pertenciam a um mesmo universo: os cineastas adotavam um estilo de experimentação e exploravam-no em todas as suas vertentes. Havia, apesar das liberdades criativas, um senso de diálogo íntimo entre cada cena. Calidris hesita entre fazer um filme sobre a imigração (visto que jamais assume sua posição de privilégio dentro do tema abordado), um filme sobre artistas experimentando novas formas de representação (uma vez que jamais acompanhamos o processo criativo das performances oferecidas abruptamente), um filme sobre o cinema ou um filme sobre a fuga de um Brasil inóspito. Como teria sido o roteiro inicial? Como se desenvolveu o processo de montagem? Resta a impressão de uma obra cuja forma nasceu na ilha de edição, onde se buscou um ritmo capaz de unir tantas formas conflitantes. É empolgante descobrir tudo o que o diretor tem a oferecer em termos de jogos de linguagem, no entanto, ressente-se a concepção de forma prévia que não converta estes pedaços num jogo retórico, e sim numa obra coesa em sua experimentação.

Filme visto online no 4º Festival Ecrã de Experimentações Audiovisuais, em agosto de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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