É Rocha e Rio, Negro Léo (2020) constitui um projeto particular dentro da carreira da cineasta Paula Gaitán. Acostumada ao discurso progressista e bastante eloquente do músico e sociólogo Léo, seu genro, a diretora decidiu gravar uma longa conversa com o artista durante um único dia, em sua casa.

Assim, Negro Léo discute política brasileira, evolução musical, religião, drogas, redes sociais e muitos outros temas, enquanto narra sua própria trajetória artística e intelectual. Ao longo de mais de 2h30, a cineasta alterna as longas conversas informais com improvisos musicais. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com a cineasta a respeito deste projeto, exibido dentro na Mostra Olhos Livres da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes:

 

A diretora Paula Gaitán. Foto: Netun Lima / Universo Produção

 

Em que medida existia um roteiro prévio para o filme?

Existia mais um argumento, na verdade, relativo a questões ligadas à resistência. Isso veio da minha primeira conversa com o Léo. Muitos assuntos importantes estavam acontecendo: o filme foi feito no começo de 2019, e existiam diversas pautas em paralelo. Como eu já tinha uma convivência familiar com o Léo, eu já o via apontando para algumas questões essenciais. Eu apaguei na montagem a maioria das minhas perguntas a ele, porque seria interessante não ficar muito jornalístico, muito comandado por mim. Mesmo assim, eu apontava algumas questões para ele tecer um pensamento. Eu apareço mais trabalhando aspectos da câmera. Eu nem precisaria dar muitos direcionamentos, porque isso é inato do Léo: a fala muito rica, sofisticada e precisa ao abordar a literatura, a arte. Ele possui uma cultura importante. O Léo me surpreende, falando com frequência sobre livros e filmes aos quais eu nunca tive acesso.

A partir disso, escrevi uma série de perguntas, que se tornaram uma espécie de roteiro. A ideia deste roteiro se encontra na escritura da montagem. Eu tenho um material filmado que nunca chegou a se tornar obra. Por exemplo, fui a Nova York, onde gravei pessoas que me interessam. Estou finalizando um projeto com Ken Jacobs, e tenho filmado diversos músicos. Penso muito no fato que o Léo, além de ser compositor, é poeta, músico e faz performance. Isso me interessava até sonoramente: no filme, ele toca menos do que fala. A palavra se torna melodia. É a questão do cinema-poesia: o texto dito já é poesia, o enunciado já é político. O Pasolini e o Godard têm muitos exemplos sobre isso. Mas isso nunca tinha acontecido comigo, ao vivo, na minha frente. Percebi enquanto eu filmava: eu nunca o tinha visto com tamanha fluidez, numa velocidade de raciocínio impressionante.

Filmei quase cinco horas em plano-sequência sem pausa para café, sem água, num fluxo constante. Quanto ao movimento da câmera, eu percebi como seria a escrita do filme conforme dizia ao Lucas [Barbi, diretor de fotografia] para continuar por um caminho ou outro. O roteiro se torna uma conjunção de coisas. Em geral, eu escrevo meus roteiros, mas durante as filmagens, eles se tornam algo diferente. O roteiro é uma peça básica de investigação. No caso deste documentário, eu tinha muitas anotações do Pierre Clastres, que me interessam muito. O Léo é sociólogo, e me ajudou muito com o texto do meu novo filme, Luz nos Trópicos (2020). Por isso, já tinha a intenção de temas a abordar.

 

 

O Léo não é apenas um objeto de estudo, ele se torna cocriador da obra.

Com certeza. Eu acredito que ele deveria ter assinado o filme comigo, mas ele não quis. O Léo não quer ficar com as críticas ao diretor, ele acha que isso é terreno meu, eu que me resolva! Quando eu falo da écriture zero, eu tento colocar cortes muito finos e intervir o menos possível. Eu filmei coisas demais com ele ao longo de dez anos de apresentações. Eu poderia cortar a imagem entre ele e os shows. Talvez o resultado ficasse mais ameno para o espectador, como nesses retratos mais ilustrativos. Mas decidi apenas usar o material obtido em um único dia, em ordem praticamente cronológica. É quase um único plano-sequência, com poucos cortes. Não foi por preguiça, porque já tenho o Léo no Lincoln Center, em Nova York, fazendo uma performance impressionante sobre a Bíblia. Eu tenho esse material, e até poderia fazer outro filme com ele. Tenho ele tocando em São Paulo, em outras cidades, com as mais diversas bandas, fazendo alguns concertos mais pop.

Mas o filme é apenas o recorte de um dia. Eu nunca tinha visto ele vocalizar, por exemplo, aquilo era novidade para mim. Seguimos a ideia do Thelonious Monk sobre o improviso do som: a improvisação se torna dinâmica de construção. Quais notas emergem da profundeza? Com este recorte, já se toma uma decisão clara e evidente sobre o trabalho. Como conheço o Léo há dez anos, é duro abrir mão de tanto material interessante. Mas não queria que o espectador tivesse uma visão muito específica do Léo apenas como músico. Fui tomando essas decisões porque considerava importante ter uma coerência no ponto de vista.

 

A diretora Paula Gaitán. Foto: Netun Lima / Universo Produção

 

Temos a impressão de um cinema ao vivo, em tempo real. É menos solene do que uma apresentação didática.

Essa era a intenção, como um Big Brother às avessas. As pessoas ficam horas e horas consumindo uma forma de televisão barata, na qual as câmeras se limitam à observação. Os reality shows têm câmeras camufladas, numa dinâmica louca. É um tédio ver estas pessoas transitarem pelos espaços, namorarem nestes programas. As pessoas aderem a coisas muito prosaicas na televisão, e ficam hipnotizadas por aquilo! Aqui, nós também usamos a câmera em tempo real, mesmo que deslocando algumas vezes. Aproveitamos a mesma lógica, a mesma ideia do tempo deslizando diante dos nossos olhos, porém transformado num pensamento bastante forte, enfático e frontal.

Sei que a imagem parada no tempo pode tornar o público ineficiente: ele não adere à ideia de não existir uma ação dentro do plano. Disseram no debate que algumas pessoas saíram no meio da sessão. Isso é um risco. Mas o Léo, de maneira muito interessante, discute esse momento atual do Brasil, que me parece muito pertinente. Ele clama por uma discussão, um enfrentamento. Léo olha diretamente para a câmera e fala sobre coisas sérias, importantes. Quando o filme começar a circular em lugares públicos, como escolas, por exemplo, imagino que as pessoas se manifestem.

 

Apresentação de Negro Léo e Ava Rocha após a exibição do filme. Foto: Jackson Romanelli / Universo Produção

 

Léo critica inclusive o posicionamento de parte da esquerda, que me parece o público mais propenso a um projeto como este.

Exatamente. Ele chama à reflexão. O tempo não é apenas uma resolução estética, de linguagem: é necessário que esta fala seja extensa para ele expandir este pensamento ao espectador. Uma tensão se dá permanentemente entre quem filma e o que é filmado. É quase uma coreografia com a câmera. Isso é bonito, uma câmera em estilo action-painting, acompanhando o tempo dele. Esta poderia ter sido uma experiência péssima: nunca se sabe o que vai acontecer entre as equipes, mas parte deste equilíbrio se deve ao diretor de fotografia, que compreendeu bem a ideia do fluxo. São coisas muito estranhas. Algumas filmagens não conseguem ter o fluxo do rio, por mais que as pessoas desejem.

Aqui, eu sentia que tudo passou muito rápido, todo mundo aderiu ao fluxo do Léo. A equipe estava ligada num mesmo percurso. Isso se sente na pulsão da câmera, no tempo dos sons. As pessoas ao redor também queriam ouvir o que ele tinha a dizer, não era uma gravação qualquer. Sente-se no filme essa energia de pessoas apaixonadas ao redor dele. Obviamente, o Léo estava totalmente à vontade, ele sentia confiança na equipe para revelar coisas bem íntimas. Ele também poderia ter pedido para tirar alguma coisa ou outra do que disse, especialmente a parte das drogas. Mas ele fala de maneira muito sofisticada sobre drogas. É uma escrita poética de associações entre temas. Estou contente com esse projeto, muito diferente de tudo o que tenho feito.

 

Fragmento do cartaz de É Rocha e Rio, Negro Léo.

 

A propósito de seus outros projetos, você deve apresentar em breve Luz nos Trópicos em Berlim. O próprio festival descreveu o filme como “uma experiência sensorial de mais de quatro horas de duração”.

Ele é quase um filme de aventura. Alguém da equipe me perguntou em qual categoria a gente colocaria o filme, se era drama… Mas pensamos em aventura, o que faz sentido. Ele foi filmado em Nova York, em situações e temperaturas muito diferentes. Existem partes no inverno a -20ºC, numa geleira. “Tristes Trópicos” foi escrito pelo Lévi-Strauss em Nova York, mas nada no filme é muito explícito: você vai encontrar citações dessa experiência de escrita do livro, embora a montagem ocorra à distância. Você precisa chegar até a quarta hora do filme para entender a primeira hora de duração. Não sei se é uma boa escolha, talvez algumas pessoas do público saiam da sessão antes do fim, mas aí eu não tenho controle.

Essa ideia da montagem à distância é muito cara para mim. A montagem de Eisenstein ocorre com dois planos entrando em choque, formando um terceiro plano. Aqui é diferente: um plano está a uma hora na montagem, e o plano com o qual ele se comunica está a três horas na montagem. Esses planos não vão estar juntos, mas eles se relacionam à distância, como um leitmotiv do filme. É um filme de fluxos também, incluindo um fluxo de consciência. Ele soma as experiências nos rios do Pantanal, na Chapada dos Guimarães, numa aldeia indígena. Não é National Geographic, naturalmente, mas tem contrastes visuais exuberantes. Foi uma experiência radical de fazer um filme fluido com uma equipe relativamente grande e uma fotografia extremamente sofisticada. Tem o século XIX, o século XX e um futuro distópico.

Mas isso acontece em muitas tramas agora, até nos seriados da Globo, quando um personagem do futuro visita o passado. Eu não estou inventando nada. Vários autores trabalham ideias parecidas, mas fazemos de maneiras diferentes. Existem milhares de filmes com rios e aventuras em diversas locações. Eu não sou crítica, mas acho que o que existe de interessante em Luz nos Trópicos é a articulação entre diferentes espaços, com tom épico. O mais bonito neste filme é a questão indígena. Eu sou latino-americana, sou colombiana. As pessoas costumam dizer que sou francesa, mas nasci na França apenas por acaso: meus pais estavam passando por lá, mas não tenho nada de francesa, sou totalmente latino-americana. Minha mãe é de origem eslava, nascida no Brasil, e meu pai é colombiano. Fui criada na Colômbia, nem mesmo na capital, na província mesmo. A minha relação com a natureza é muito forte. Nada do que eu faço é apenas intelectual: existe sempre algo físico também.

A questão indígena atravessa o filme todo, porque ela atravessa as Américas. Talvez seja a nossa única possibilidade de cura: voltar à ancestralidade e perceber que essa constitui uma das nossas únicas alternativas. Mas quero que você veja e tire suas próprias conclusões. Não quero dizer demais e depois você não nota nenhuma dessas questões no filme. Depois a pessoa vai ver e se irrita por não enxergar nada disso. É importante que as pessoas construam esses roteiros, na verdade: meus roteiros são construídos por quem vê os filmes. Eu ainda estou finalizando, porque o filme é gigante. Foi uma surpresa, porque Berlim tomou um risco enorme: eles nos convidaram na última semana de dezembro. Eu enviei o filme e, três semanas depois, chegou o convite. Ou seja, eles devem ter gostado, acreditaram no projeto. Este é um filme que ocupa o espaço de três filmes pelo menos, então eles foram muito corajosos, porque é fácil programar um filme tão extenso. Fiquei muito feliz. Vamos ver o que dá: tomara que dê tudo certo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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