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Sinopse

Laika, uma cachorra abandonada, foi o primeiro ser vivo a ser enviado ao espaço e, portanto, morreu. Uma lenda diz que voltou à Terra como um fantasma e ainda perambula pelas ruas de Moscou ao lado de seus descendentes livres.

Crítica

A cada vez que se defende popularmente o caráter informativo do documentário, sublinhando as limitações inerentes à linguagem em função de uma suposta obrigatoriedade descritiva, torna-se um alívio encontrar um filme como Cães do Espaço. Os diretores Elsa Kremser e Levin Peter exploram a matriz documental para propor uma jornada sensorial e narrativa dotada de uma originalidade impressionante. Entretanto, partem de uma sinopse que poderia dar origem a um material linear e didático: uma evocação da cadela Laika e de outros animais enviados ao espaço como forma de teste para futuras explorações humanas.

Ao invés de buscar farto material de arquivo, os diretores se desafiam na arte da representação: como evocar Laika através de outros cachorros? Como evocar a viagem espacial sem precisar de imagens referenciais do espaço? Como fazer alusão ao corpo morto da cadela em pleno voo, à irracionalidade dos cães submetidos a uma experiência extrema que não podem compreender? De que maneira o envio de animais ao espaço dialoga com nossa insignificância, nossa ganância ou mesmo nosso descaso enquanto humanos? Na ausência de depoimentos, letreiros ou material informativo, a resposta aparece em forma puramente estética: distorções luminosas representam a intensidade da viagem, um mínimo fragmento da atmosfera terrestre representa, metonimicamente, todo o espaço sideral.

Quanto aos cachorros, a dupla encontra a solução mais interessante: acompanhar cachorros de rua, como Laika, e estudar seu comportamento. O resultado em imagens impressiona pela aparência de controle absoluto diante de um protagonista incontrolável, no caso, um cão agressivo, que ataca outros cachorros, dilacera um gato diante das câmeras, morde a carroceria dos carros. A câmera acompanha as errâncias do animal com um steadycam de movimentos elegantes, apresentando um trabalho impecável de luz e enquadramentos. Este controle seria admirável numa ficção (fosse ela com atores humanos ou com animais em animação, por exemplo), mas soa ainda mais improvável e rara dentro de um documentário.

Kremser e Peter efetuam planos e contraplanos quando dois cachorros se encontram, aproximam-se bastante do animal (esta é a vantagem de ter uma figura que não se incomoda com a presença da câmera) e produzem cenas de uma beleza ímpar, como os cachorros que mordem o carro até o alarme disparar, ou a dança/luta entre dois cães numa rua molhada, algo que a câmera acompanha em plano-sequência, sem perder um único instante da movimentação dos adversários. Através destes instantes silenciosos, trazem ao olhar do espectador a imprevisibilidade dos bichos, sua irracionalidade e o instinto de sobrevivência que torna as dezenas de testes efetuados em Laika ainda mais perversos, ao limite da tortura. Laika viu a Terra de longe antes dos seres humanos, nos lembra o filme. Mas de que adianta esta impressão em olhos incapazes de racionalidade, de poesia, de representação? Incapazes de nos contar o que viram?

Nos raros instantes em que o documentário utiliza materiais de arquivo reais de cães de rua sendo presos, perfurados e amarrados a eletrodos para embarcarem na viagem espacial, a narração em off se interrompe por completo. Nada que possa ser compreendido pelas imagens, por conta própria, é repetido pela banda sonora, enquanto nenhuma explicação do narrador se repete em referenciais imagéticos. Os cineastas produzem um atrito muito fértil na textura audiovisual, solicitando ao espectador que efetue as deduções necessárias, percebendo por si próprio o absurdo da seleção dos cães, o status infundado de animais “privilegiados” por terem sido escolhidos, o espetáculo midiático kitsch criado a partir dos cachorros “espaciais” e seus filhotes.

Deste modo, por meio de imagens silenciosas, Cães do Espaço consegue evocar a corrida espacial, o orgulho soviético, a manipulação da mídia e a objetificação destes animais. Enquanto imagina o corpo inerte de Laika dentro de uma cápsula espacial, sugerido pelo som, o espectador se depara com um balé magnífico de formas e cores, além de uma abordagem histórica pelo viés menos burocrático possível. Não, o cachorro de rua não está matando o gato para satisfazer as vontades da câmera, e o filme tampouco poderia antecipar o peso desta ação. Mesmo assim, os diretores estão presentes na hora certa no momento certo, testemunhando pacientemente a brutalidade do mundo animal, em oposição à brutalidade dos humanos.

Laika, símbolo de orgulho para os soviéticos nos anos 1950, torna-se um novo símbolo da desmesura das nossas ambições. Neste processo vertiginoso de ficcionalização do mundo natural e documentarização dos mitos (a noção de que a cadela se tornou um espírito vagando por Moscou), Kremser e Peter exploram a imagem enquanto elemento produtor de significado em si mesmo, pelo agenciamento de cenas, pelos enquadramentos, pelo uso do som e do silêncio. O resultado é muito mais potente do que qualquer explicação verbal de algum especialista no assunto. Cães do Espaço nos lembra que o documentário possui uma responsabilidade com o real, mas não pode, de modo algum, se tornar refém da estética naturalista, nem da apreensão fotográfica do mundo. A relação com a História e a política pode ser impregnada de poesia.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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