Crítica

A tradição em oposição à modernidade, o artesanal contra o industrializado. Ainda que de modo leve, e bastante simplificado, esses confrontos ecoam ao longo da animação espanhola Bruxarias, da diretora Virginia Curiá, que se ancora ainda em outro conflito – de certa forma derivado dos anteriores, porém, de fundo mais pessoal – envolvendo suas protagonistas: o de gerações. Desde o início, fica claro que as visões de mundo distintas, em decorrência da grande diferença de idade, geram um ruído na relação entre a pequena Malva, garota inquieta, sempre com seu celular em mãos, e sua avó, Lalila, uma experiente curandeira, que guarda os conhecimentos milenares do preparo de incríveis poções mágicas. Contudo, apesar das discrepâncias, a genuína ligação entre as duas também é visível, não somente pelos laços afetivos, mas também advinda do interesse da garota pelos segredos da avó.

Uma fórmula capaz de fazer pessoas e objetos voarem, particularmente, atrai a atenção de Malva, que busca impressionar Selu, amigo instrutor de parapente. No entanto, a menina não é a única interessada na poção. Uma grande corporação do ramo de cosméticos, liderada pela inescrupulosa Rufa, deseja comprar as receitas de Lalila, como já fizera com todas as outras curandeiras da região, para transformá-las em produtos lucrativos. Ao recusar a proposta, a feiticeira é sequestrada pelos capangas de Rufa, cabendo a Malva a missão de resgatar a avó. Em meio ao embate entre o capitalismo e a bruxaria, a protagonista passa por uma jornada de amadurecimento e autoconhecimento, entrando em contato com suas raízes e despertando o seu lado bruxa. Jornada essa que, na teoria, poderia evocar o magnífico O Serviço de Entregas de Kiki (1989), clássico de Hayao Miyazaki do qual, na prática, Bruxarias se distancia totalmente, a começar pelo quesito visual.

Curiá opta por uma animação em 3D, buscando fugir da simetria convencional no desenho dos personagens, cujos traços faciais – nariz fino, olhos grandes, cabeça desproporcional ao corpo – lembram, moderadamente, os das animações de Tim Burton ou ainda de outros longas do gênero, como o ótimo Minha Vida de Abobrinha (2016). Porém, na comparação com esses trabalhos, o design aqui se mostra muito mais rudimentar, com personagens e objetos chapados, compostos de poucas texturas e apresentando movimentos limitados. Tal ausência de detalhes, de riqueza estética, esvazia consideravelmente o potencial de encantamento do filme, fazendo com que sequências como a de Malva voando à noite em seu guarda-chuva – em substituição à clássica vassoura – ou colhendo as flores encantadas para a poção da avó careçam de um senso de fantasia mais apurado.

A frugalidade visual é acompanhada por uma ingenuidade narrativa, exposta na trama repleta de resoluções frágeis, que denota o direcionamento do projeto a um público bastante jovem. Os diálogos simplórios, com trocadilhos e piadas que talvez percam ainda mais com as traduções, são carregados de uma comicidade pueril, de pouco apelo para plateias adultas ou mesmo para crianças mais velhas. Há ainda toques de humor nonsense deslocados, como a personagem da mãe da vilã que, em meio aos planos diabólicos da filha, busca parceiras para jogar baralho, além de alívios cômicos genéricos que surgem na forma dos animais que povoam a história, como Mus, o gato de Malva, ou os caracóis cantores que por vezes conduzem a ação, como uma espécie de “coro grego”.

A diretora demonstra também dificuldades na manutenção do ritmo. Falta dinâmica ao longa que, mesmo em sua curta duração, transmite a sensação de prolongamento desnecessário de diversas situações. Por sua vez, a já citada limitação dos movimentos da animação impede a criação de sequências de ação e aventura fluidas, que realmente empolguem. Todas essas fragilidades prejudicam a geração de praticamente qualquer tipo engajamento emocional com os personagens, seus dramas ou ainda com as mensagens que Curiá pretende propagar sobre a possibilidade da comunhão entre a natureza e o progresso, sobre os benefícios e prejuízos que acompanham os adventos tecnológicos etc. Mesmo tentando dialogar com a atual geração, através de citações ao Twitter, da relação de Malva com a tecnologia, a dependência do celular, ou dos vídeos gravados por Selu, o longa sempre soa defasado, sobretudo em sua forma.

O trabalho de Curiá parece sofrer de um curto-circuito anacrônico, de um conflito interno de concepção, almejando ser um produto moderno, porém, sem os recursos necessários para atingir tal objetivo. Apesar da aura simpática e das visíveis boas intenções da cineasta, é difícil imaginar como sua obra poderá impactar o público ao qual conscientemente se orienta, por mais restrito que esse seja. Pois os poucos atrativos oferecidos por Bruxarias não emanam magia suficiente para encantar e fazer com que se destaque entre as diversas opções de entretenimento oferecidas aos contemporâneos de Malva.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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