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Sinopse

Pedro chega à Terra do Fogo para fotografar o casamento de um fazendeiro. Nesse território hostil, desenvolve uma obsessão pela noiva. Descoberto e castigado, passa a ser cúmplice de um genocídio.

Crítica

Branco no Branco (2019) leva algum tempo para introduzir de fato de seu objeto de estudo. A câmera chega de longe, espiando à distância o vilarejo coberto de neve no extremo sul do Chile. Ela admira a paisagem, a fachada das casas, até se aproximar silenciosamente das mansões e descobrir a luz acesa dentro de uma delas. A condução das imagens torna tão fria e suntuosa que o drama sobre o genocídio indígena remete aos filmes de terror em casas mal-assombradas. O fantasma, neste caso, não provém de algum índio massacrado, e sim do Sr. Porter, o barão ausente nas cenas. Todas as ações giram em torno do homem poderoso e invisível, “ocupado demais” com os negócios sabe-se lá onde. É o Sr. Porter que sustenta o casamento próximo com uma menina impúbere, que contrata o fotógrafo Pedro (Alfredo Castro) para registrar a noiva, quem paga diversos funcionários e eventualmente promove a matança contra minorias locais. Através da ocultação deste patriarcado perigoso, ele se traduz nas pessoas ao redor: esposa, domésticas e empregados temem a retaliação da figura de poder que não virá jamais.

A representação pela ausência constitui um aspecto fascinante deste projeto, destinado a impregnar a dominação masculina em cada cenário e personagem. Para a fotografia da jovem noiva Sara (a excelente Esther Vega), as cortinas devem permanecer do jeito que o patrão mandou, no cômodo escolhido por ele, com a roupa eleita por ele, no dia de sua predileção. Não estamos longe do delírio coletivo, ou da veneração a algum morto – afinal, a fé consiste na crença e obediência a forças invisíveis, superiores, que regem a vida pelo medo de uma retaliação futura. O diretor Théo Court toma a precaução de situar seu ponto de vista no único personagem alheio àquela configuração, capaz de estranhamento diante dos rígidos códigos de conduta da propriedade. Pedro possui uma relação profissional e erótica com a fotografia, buscando a beleza a qualquer preço, tratando corpos como espectros desprovidos de subjetividade. Isso valerá tanto para a espetacular cena da fotografia de Sara, garotinha despida para as necessidades do artista, quanto para testemunhos muito mais graves em seguida. De qualquer modo, aos olhos do fotógrafo, os corpos de mulheres, índios e trabalhadores se limitam a figuras concebidas para captarem a luz dentro dos enquadramentos escolhidos.

Para dialogar com este mundo de embelezamento, o cineasta não opta por qualquer subversão estética (a feiúra, a sujeira, a dissonância). Pelo contrário, ele permite que o olhar de Pedro contamine a obra inteira, criando uma narrativa ultra estetizada, onde cada plano emula uma pintura renascentista ou proporciona um tour de force da direção. As sequências na natureza são trabalhadas com precisão de detalhes no que diz respeito à trilha sonora sombria, às luzes escurecidas, à granulação pesada, além dos movimentos de câmera lentos e constantes (zooms e panorâmicas, em especial). Mesmo a céu aberto, com farta luz natural disponível, o resultado é subexposto e lamacento: a câmera começa a se mover sozinha, pelas planícies cobertas de neve, antes de encontrar um personagem que pretende acompanhar. Em outro momento, efetua longos movimentos panorâmicos à direita e à esquerda, dentro de um extenso plano-sequência, para descobrir tanto a atividade à frente de um casebre quanto no quintal. A coreografia impressiona, porém chama atenção excessiva a si própria. Podemos esquecer Pedro, Sara, os índios: no final, o personagem que mais se impõe ao cenário é a vaidosa direção de fotografia, oferecendo composições que dizem tanto sobre as habilidades do cineasta quanto sobre a apatia da população face aos crimes da região.

Este seria o aspecto mais incômodo de Branco no Branco: a representação das minorias sociais. O cineasta busca denunciar um sistema opressor através de recursos de linguagem questionáveis. Ao invés de criticar propriamente este mecanismo, limita-se a refleti-lo pelo cinismo das ações: a solenidade da matança, a conivência das pessoas ao redor, a naturalização do extermínio. Court sublinha a frieza dos atos, mas tampouco humaniza os indivíduos subjugados por Sr. Porter e seus cúmplices. Nenhum índio tem direito à voz, expressão de desejos ou de subjetividade. A pequena Sara, abusada pelos adultos, não ganha oportunidade de se impor, o que se estende à governanta Aurora (Lola Rubio) durante o abuso sexual. Existe uma linha ética fundamental entre apresentar o descaso com os personagens e reproduzir este descaso no próprio filme. Quando se cria uma obra a respeito de personagens dos quais se discorda, é essencial se demarcar do agressor. O drama chileno, entretanto, funde-se com este olhar imponente, posado e agressivo sobre as minorias. Embora se distancie dos genocidas, ele jamais se aproxima das vítimas.

A fotografia still se traduz num estudo interessante sobre o ato de ver e ser visto, sobre a mise en scène do real (a obsessão de Pedro em controlar o cenário de suas fotos) e a espontaneidade da História. Cada cena sobre ensaios fotográficos (o noivado, o casebre e a matança) demonstra profunda reflexão prévia da direção. Court sabe exatamente quando revelar a imagem ao espectador, e quando fazê-lo imaginar o conteúdo em frente às câmeras. Ele oferece ao público o voyeurismo perverso (porque se delicia com a morte) e pedófilo (porque erotiza crianças) de Pedro, o que se traduz numa experiência amarga ao interlocutor. O filme possui clara intenção de provocar através de composições finamente calculadas, com luzes impecáveis, personagens parados nos terços exatos dos enquadramentos, trilha sonora se iniciando e concluindo no segundo exato antes de uma ação. Assim como seu protagonista, o diretor opera por meio de uma asfixiante estética do controle. Neste aspecto se encontra o mérito e a limitação desta abordagem: para observamos estas pessoas com o devido estranhamento (de repulsa, de condenação moral), seria preciso separar as linguagens, provocar uma fricção entre o olhar colonizador e o olhar colonizado. Ora, o filme chileno permite apenas o ponto de vista daquele que mata e admira a beleza das mortes. O resultado pode ser considerado condescendente com o sistema que busca denunciar.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
6
Leonardo Ribeiro
8
MÉDIA
7

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