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Sinopse

Em luto pela morte da mãe, Beatriz decide se mudar para o Brasil. A jovem de 16 anos conhece Rogério, músico trintão que lida com o legado artístico da família. Ela embarca num intenso e tóxico relacionamento com ele.

Crítica

É curioso que o filme centrado em apenas dois personagens, num cenário único, tenha tanta dificuldade de situar suas ações no tempo e no espaço. Na cena de abertura, Beatriz (Ailín Salas) admira Rogério (Caco Ciocler) tocando numa banda – sabemos que ele se apresenta pela sugestão do áudio, em off. Depois, ambos se encontram no sítio onde se desenvolve a narrativa. Como foram parar ali? O show ocorreu no sítio? O imóvel pertence à família da garota ou ao músico? Em seguida, ela se banha no mar e ele chega com a toalha, mas reforça que ambos não possuam qualquer relação. A garota e o adulto passaram a noite juntos, ou nunca se viram? Existe um relacionamento entre eles? Há um namoro, uma amizade colorida, mero desejo platônico? Por que o rapaz nunca sai do local? Ele mora ali, ou este era apenas o local de descanso? Ele não precisa ensaiar, encontrar outras pessoas? Estando à espera de um prêmio importante, não precisaria estar em contato com produtores e assessores? Quanto à garota, ela não precisa voltar nunca? O que lhe espera em São Paulo? Boni Bonita (2018) é marcado por duas figuras que deambulam numa casa, sem desejos específicos, planos delimitados, vontades para o futuro. Não se sabe ao certo de onde vêm, nem para onde vão.

Estes questionamentos serão apenas parcialmente solucionados ao longo da trama, pela recusa em mergulhar na psicologia dos personagens. A reunião da dupla no mesmo sítio soa como conveniência de produção ao invés de justificativa diegética. Por que estas duas figuras entediadas e conflitantes nunca saem dali? O que impede estes anjos exterminadores de explorar a vizinhança? Caminhamos no limiar de significados que não se concretizam. Os personagens interagem pouco com a casa-título: eles não fazem refeições, não mergulham na piscina, não caminham pelos corredores. A locação se torna paisagem – um belo fundo de árvores e água cristalina, um horizonte vazio por onde Beatriz e Rogério passeiam. Ele é um músico que quase nunca vemos tocando, seja porque a montagem interrompe a cena assim que ele começa a tocar, seja pela substituição da imagem da apresentação pelo black e pelo som em off. Caco Ciocler dedilha dois acordes e caminha entre instrumentos musicais, porém há poucos indícios de que seja músico de fato. Ela possui problemas com o pai, nunca bem desenvolvidos, enquanto ele resume os conflitos paternos a uma cena deslocada, talvez acrescentada a posteriori, envolvendo Ney Matogrosso. O trauma da perda da mãe surte pouco efeito em Beatriz, a não ser que o interlocutor equivalha a automutilação a um sintoma do luto. Já o vizinho aparece apenas para seduzir Beatriz, enquanto as demais meninas existem somente para conquistar Rogério.

Em especial, incomoda o fato de a garota ser condicionada à presença do músico. Ela chega ao sítio inúmeras vezes por causa dele, fica por ele, volta por ele. Ela não ganha tarefas ou conflitos dignos de desenvolvimento fora daquele espaço. Já Rogério possui amigos, fãs, ele vai para o bar, ele está prestes a ganhar um prêmio da MTV. Ela retorna, com pequenos intervalos de tempo, para ser tratada como “garota”, “menina”, e ainda se jogar nos braços do homem que a despreza e tenta inúmeras vezes enviá-la de volta à cidade. Há um caráter abusivo neste relacionamento, jamais assumido pelo filme enquanto tal. Por mais vago que seja o espaço do sítio, ele constitui um espaço pertencente a Rogério, um antro masculino de dominação e controle. Ainda que encontre novos rapazes, a jovem nunca consegue esquecer o músico, precisando da validação dele (no segmento final) para seguir com sua vida. Em paralelo, Beatriz é reduzida à corporalidade: ela é um corpo presente, fortemente sexualizado, que se queima com bitucas e se corta com lâminas. Ela é o corpo que fede a cigarro, que tem cheiro forte nas axilas, que se masturba com indiferença, que mostra os seis nus à câmera e se entrega ao vizinho adolescente sem empolgação. Mesmo quando faz sexo com outros homens, o gesto serve para provocar Rogério, ou seja, para o olhar dele.

Talvez o contexto tóxico fosse bem trabalhado dentro de uma atmosfera crua e realista – quem sabe Cláudio Assis trouxesse violência aos enquadramentos, ou Karim Aïnouz ressaltasse a poesia triste desse mesmo roteiro. O diretor Daniel Barosa prefere uma abordagem ultra estetizada, marcada por escolhas que chamam atenção constante à presença da câmera e do diretor – algo contraproducente dentro de um “filme de personagens” como este. Mesmo assim, uma ideia muito interessante atravessa o projeto: a iniciativa de adotar uma câmera cada vez mais livre à medida que os personagens se relacionam. Por isso, os planos fixos do início cedem espaço a à câmera na mão no segmento final, enquanto o 16mm se transforma em captação digital. No entanto, o conceito é sublinhado ao extremo. A filmagem em película ressalta demais a sujeira, a granulação e as cores lavadas, ao passo que a câmera livre treme em excesso. A organização em capítulos acrescenta pouco à narrativa: saltamos de 2007 para 2009, 2013 e 2016, sem que as diferentes estações exerçam influência na narrativa, e sem que a passagem dos anos seja propriamente sentida (Beatriz tem o corpo coberto de tatuagens e ganha novo corte de cabelo, enquanto Rogério permanece idêntico).

Boni Bonita contém diversas boas ideias executadas pela metade. Trata-se de um filme sobre rupturas sem carinho nem catarse; um filme que pensa em sexo o tempo todo, mas tem vergonha de filmá-lo (incluindo os tradicionais personagens que transam de roupa, ou com o lençol cobrindo a bunda). É estranho para o espectador ver Beatriz e Rogério brincando na água e deduzir que estão de fato juntos, para depois dormirem cada um em seu quarto. É curioso vê-los se despedirem ferozmente para voltarem alguns anos depois como se nada tivesse acontecido. O envolvimento entre ambos nunca se esclarece, algo que talvez provenha de um gesto voluntário, interpretado enquanto sinal de complexidade. No entanto, seria fundamental que a abordagem do relacionamento abusivo conferisse maior atenção aos sentimentos dela. Não por acaso, a cena final permanece ao lado do músico, enquanto deixa a garota ir embora. Trata-se de um projeto em que o afeto é retirado de cena: temos o pós-amor sem a imagem do amor, a crise sem os motivos para a crise. Em determinada cena, eles começam a brigar ferozmente sem que se entenda bem o que levou a tal comportamento. Através dos saltos temporais, ocultou-se a dor, a tristeza, a paixão, para se focar quase exclusivamente na representação dos corpos, ainda tímida demais para funcionar enquanto metáfora de uma união destrutiva.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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