Crítica


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Sinopse

Gary é sequestrado. Bob e Patrick decidem embarcar numa aventura para tentar trazê-lo de volta. Diante dos perigoso do caminho, eles terão de provar que não há nada como a amizade.

Crítica

Um elemento fascinante das histórias envolvendo Bob Esponja diz respeito à capacidade de autoparódia. Os personagens podem ser profundamente inocentes, mas o humor a respeito deles nunca o é. A esponja submarina morando na “Fenda do Biquíni” (nome de óbvia malícia) cumpre seu papel enquanto aventura colorida para distrair os pequenos, enquanto se revela um filme sobre os filmes, ou ainda uma série de histórias sobre a arte de contar histórias. Em O Incrível Resgate (2020), quando o herói e seu colega Patrick partem rumo à salvação de Gary, a estrela-do-mar declara estar contente por se encontrar dentro de um buddy movie, com dois grandes amigos enfrentando provações até superarem os obstáculos e reforçarem seus laços no final. Bob Esponja contesta, preferindo enxergar a missão dentro da jornada do herói, onde ele seria o único protagonista que retornaria para casa com o elixir no final, após provar seu valor individualmente. Existe uma divertida autoconsciência metalinguística ao longo do processo, com o vilão satirizando seu papel de vilão, a vítima Gary ridicularizando sua posição de vítima e assim por diante.

Deste modo, o longa-metragem nunca se leva a sério enquanto procura pelo animal de estimação (alguém realmente pensaria que o caracol corre risco de morte?), apesar de se levar muito a sério enquanto paródia dos clichês cinematográfico. O diretor e roteirista Tim Hill demonstra louvável prazer em atravessar distintos gêneros do cinema, brincando com cada um: o faroeste, a ficção científica, o cinema de autoajuda, o musical, o terror, a fábula ecológica e mesmo a “história de origem”. Cada segmento subverte os elementos esperados com competência, ajudado por uma produção eficaz: a equipe jamais investe no humor do antagonismo, do tosco ou do trash, privilegiando o exagero típico da caricatura. Recentemente, Playmobil: O Filme (2019) havia proposto uma mistura semelhante de gêneros, porém encarando cada segmento com seriedade (a ação queria ter o nível de James Bond, o épico pretendia emocionar como Ben-Hur etc). A animação de 2020 adota um caminho muito mais interessante, apropriando-se dos signos de cada estilo para sublinhá-los ao limite do patético.

O projeto possui um didatismo diferente das obras infantis literais: ao contrário da explicação do mundo e das artes por meio da simplificação, Hill reforça as contradições de cada contexto até se tornarem absurdas. Ao invés de ensinar o valor da amizade e da ecologia, ensina em primeiro passo a interpretação da ironia, do sarcasmo e das próprias imagens. A sequência envolvendo a “Janela do Enquanto Isso” nada mais é do que uma maneira lúdica e incrivelmente eficaz de apresentar a montagem paralela às crianças. Ao mesmo tempo, há impecável equilíbrio de tons: se Bob Esponja e Patrick ostentam o comportamento sorridente e tolo demais (algo declarado por eles mesmos), os personagens ao redor transbordam desprezo e descontentamento com o mundo (caso de Lula Molusco, Plankton e Seu Sirigueijo). O trabalho de vozes transparece a conforto dos atores com seus personagens, interpretados previamente em outros filmes e séries, mas também a disposição às ambiguidades do texto. A presença de uma máquina ultracapitalista visando somente o lucro, cujo bordão favorito é “Você está despedido!” faz óbvia referência ao futuro-ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Bob Esponja: O Incrível Resgate reafirma a rara disposição desta animação familiar em analisar o mundo do dinheiro e da exploração trabalhista. O projeto sempre criticou a gestão desumanizada dos negócios por Seu Sirigueijo, em paralelo com a apatia cotidiana de Lula Molusco e a empolgação incompreensível de Bob Esponja ao ser explorado pelo patrão. Enquanto crônica da alienação, a narrativa atinge um belo ápice quando a lanchonete, destituída de seu único cozinheiro, não pode mais atender os clientes. O dono descobre então que os negócios são movimentados pelos funcionários, cabendo dar-lhes o crédito por sua produção (ou ainda, “se o operário tudo produz, a ele tudo pertence”, porém vamos dar um passo de cada vez). Este raciocínio vale igualmente para o vilão vaidoso, um rei cujo declínio se encontra na descoberta de que os escravos estão unanimemente descontentes com tirania. Completando o painel questionador, o sábio (Keanu Reeves) encoraja Bob Esponja a descobrir a coragem dentro de si mesmo – veja bem, não a provar seu valor para outros, e sim acreditar em seu valor enquanto amigo e operário. O despertar de uma coletividade entre trabalhadores, literalmente quebrando as suas correntes, homenageia as revoluções populares.

É uma pena que a produção de origem televisiva nunca possua o nível técnico dos maiores criadores da animação cinematográfica – caso da Pixar, DreamWorks, Aardman, Ghibli e Laika. A abertura no fundo do mar carrega traços simplistas, ao passo que o novo personagem, o rei esverdeado, ostenta uma construção de corpo, roupa e cabelos limitada. Ressalvas à parte, o projeto transita muito bem entre a animação e o live action, oferecendo piadas hilárias a atores cada vez mais dispostos a parodiar suas personas (Keanu Reeves, Danny Trejo, o músico Kenny G.), incluindo valiosa participação de Tiffany Haddish, ocupando uma personagem e um espaço raramente reservado às mulheres negras. A intensa cena musical, a paródia da canção inspiradora (uma clara fachada para os heróis seguirem a aventura) e a sequência alucinógena em cassinos reforçam a sensação de que a saga sem encontra muito além, em termos estéticos e narrativos, da média das criações infantis. Que outra trama familiar permitiria aos heróis (uma esponja, afinal) se embebedar numa festança inconsequente e acordar mergulhado no próprio vômito? A ingenuidade funciona melhor no cinema quando se percebe o quão absurdo é ser ingênuo nos dias de hoje.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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