Crítica


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Sinopse

Shawna está se formando na escola, preocupada com o futuro e com a dependência de drogas da mãe, agravada desde a passagem do furacão Katrina por Nova Orleans. A situação se complica quando ela percebe uma gangue de vampiros atacando pessoas em situação de rua. Shawna precisa convencer os amigos de que não está louca, além de acabar com os ataques que se multiplicam na cidade.

Crítica

Shawna (Asjha Cooper) atravessa os problemas típicos da adolescência: a primeira paixão, a baixa autoestima, os desentendimentos com a mãe, as dúvidas quanto ao futuro profissional. Na base deste projeto, existe um drama de passagem à fase adulta (o coming of age story), embalado numa metáfora destinada a representar as tradicionais perda da virgindade e descoberta de seu potencial: Shawna é mordida por um vampiro. O ataque das criaturas milenares, através de uma mordida no pescoço, sempre possuiu óbvia conotação sexual, além de carregar um teor social importante: vampiros são figuras aristocráticas, vivendo em castelos gigantescos e devorando a pele branca de belas donzelas. Por isso, a subversão proposta por Black As Night (2021) consiste em imaginar vampiros negros, em situação de rua ou membros de gangues, tendo como alvos outras pessoas marginalizadas. A figura lendária passa a ocupar um espaço antes reservado aos lobisomens e zumbis, rompendo com a expectativa de elegância associada a essas criaturas. Além disso, a mordida não necessariamente transforma a vítima em novo imortal: há condições para a conversão. O filme abandona o fatalismo da vida eterna para confrontar a jovem à perspectiva da morte. Em seu conceito, oferece uma bem-vinda atualização de figuras clássicas à contemporaneidade.

A prática se mostra menos empolgante. A questão social e étnica nunca se resolve por completo: o fato de os adversários estarem nas ruas, atacando pessoas que eles supõem serem cidadãos pobres, é esquecido adiante, quando o foco se volta ao barão de uma gangue. O trauma da população negra em Nova Orleans após o furacão Katrina recebe um tratamento insistente nos diálogos, porém insuficiente em imagens e na psicologia dos habitantes. O melhor amigo da protagonista, um garoto gay e latino (Fabrizio Guido), possui função acessória, sendo abandonado quando convém ao roteiro. O texto tem dificuldade de detalhar a relação entre o conjunto habitacional Ombreux e o resto da cidade, ou de acompanhar o cotidiano das pessoas neste local - de fato, o único “monstro" encontrado nas moradias populares ocupa um anexo externo, dissociado dos prédios. Como na maioria das tramas adolescentes e comerciais - especialmente aquelas concebidas para serviços de streaming -, a protagonista acumula a função de narradora em off, explicando ao espectador sua história excepcional, e garantindo que permanecerá viva no final. Apesar de tamanha exposição, desconhecemos os planos da garota para o futuro, seus gostos e posicionamentos, para além do flerte com um vizinho (Mason Beauchamp). A protagonista sustenta uma postura apática face à dependência de drogas da mãe e ao estilo de vida psicorrígido do pai.

Tecnicamente, o resultado surte efeito misto: os enquadramentos, movimentos de câmera e o ritmo da montagem transparecem um trabalho eficaz e discreto, sem alçar voos maiores do que o baixo orçamento permitiria. A narrativa sustenta uma cadência fluida, evitando acelerar conflitos ou se arrastar, cabendo bem no formato enxuto, inferior a 90 minutos. Os atores são conduzidos em registro próximo do realismo, algo benéfico quando se tenta afastar o teor sobrenatural da caricatura. Por outro lado, os efeitos especiais são fracos: os vampiros com olhos digitalmente brilhosos soam falsos, assim como os incêndios em pós-produção e as explosões das criaturas em pó. Entre assumir o caráter teen e mágico e se ater a um drama melancólico, o resultado permanece no meio do caminho. Entretanto, o principal motivo de incômodo decorre das escolhas de direção de fotografia: embora traga Cybel Martin, uma mulher negra, na função, as peles negras são mal iluminadas, escondendo-se nas sequências noturnas. O uso de vultos e silhuetas pode ser benéfico ao suspense, mas Martin esconde inclusive o rosto dos protagonistas, impedindo o espectador de descobrir suas expressões em momentos importantes (a cena subterrânea). Um instante de ação se escurece a ponto de impedir a compreensão dos gestos, e de distinguir quem luta contra quem. O filme é prejudicado por escolher a noite como pano de fundo, sem saber de que maneira trabalhá-la em termos de construção imagética.

Uma ambiguidade semelhante decorre do tratamento do elenco. Ashja Cooper manipula com facilidade os diálogos, enquanto Keith David comprova sua tradicional desenvoltura para este tipo de obra fantástica. No entanto, Mason Beauchamp e Derek Roberts, no papel do pai, possuem composições apagadas, típico caso de uma fraca direção de atores. Não ajuda o fato de, a dois terços da narrativa, um personagem surgir de lugar nenhum (Tunde, interpretado por Sammy Nagi Njuguna) para salvar os protagonistas e trazer valiosas lições e explicações - o deus ex machina está mais vivo do que nunca. A relação entre os negros norte-americanos e os nigerianos, interpretando combatentes históricos, precisaria de melhor contextualização. Negra Como a Noite (2021), no título brasileiro, carrega os traços comuns ao projeto Welcome to the Blumhouse: a aparência de roteiros feitos às pressas, realizados a toque de caixa, sem real pretensão de se tornarem grandes filmes. Caso ainda existissem videolocadoras, esta seria uma iniciativa concebida diretamente para as fitas, disputando a atenção do frequentador ao lado de títulos mais populares. Ao menos, este cinema de ambição limitada começa a perceber a importância de retratar pessoas negras e gays em posições de destaque, embora sua construção possa e mereça ser aprofundada, evitando estereótipos (caso do amigo Pedro).

Por fim, o longa-metragem oferece uma experiência morna - nem revoltante, nem particularmente memorável. Um sintoma da falta de pulso na condução se encontra no encerramento, incapaz de fornecer um destino satisfatório a qualquer um dos personagens, deixando de explorar as questões raciais, os símbolos de Katrina, Nova Orleans e Ombreux. Passado o clímax fraco, o roteiro precisa introduzir, pela enésima vez, um conflito externo para concluir trajetória da garota, deixando de aproveitar os inúmeros dilemas inerentes à vida da menina. De fato, toda a perseguição de Shawna é condicionada a suposições e pequenos indícios obtidos através de tortura (vide a questionável cena dentro do casebre): ela sequer sabia se os sujeitos apontados pelos delatores eram de fato responsáveis pela matança ao redor. O suspense e a investigação são ignorados, razão pela qual o gesto heroico da adolescente perde sua força e justificativa. O filme lembra os tempos curiosos dos teen thrillers dos anos 1990, a exemplo de Pânico (1996), quando a construção psicológica se limitava ao risível “Eu mato todo mundo porque seu pai transou com a minha mãe”. Em outras palavras, o terror de 2021 se ampara de temas importantes e figuras representativas da exclusão social norte-americana, sem saber ao certo como explorar politicamente sua analogia de vampiros, marginais e gângsteres imortais.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
4
Leonardo Ribeiro
4
MÉDIA
4

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