Crítica


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Sinopse

O bairro de Afogados, na zona sul de Recife, ferve com a atividade comercial. Ali, há um beco com bares, espaço que abriga diversos tipos de frequentadores, trabalhadores e transeuntes, pessoas que constroem um retrato simples e poético da vida suburbana do nordeste brasileiro.

Crítica

Para este documentário, o diretor Camilo Cavalcante parte de um conceito singelo: investigar as histórias humanas por trás de uma pequena viela comercial no município de Afogados, em Pernambuco. Sentado nestes bares, tomando uma cerveja junto aos outros clientes, o cineasta não apenas retrata a música, a geografia local e o comportamento das pessoas, como conversa com algumas delas. Nasce então um filme estimulado literalmente pela “filosofia de bar”, as conversas existenciais despretensiosas entre pessoas alcoolizadas, ora nostálgicas, ora eufóricas, sem qualquer preocupação com as suas imagens. Ao invés de serem convidadas pela condição de especialistas em algum tópico preciso, estes anônimos falam sobre si mesmos, sem pauta preestabelecida, sem finalidade determinada. Fala-se por falar, fala-se pelo prazer de ter alguém à escuta.

O resultado é um retrato do Brasil profundo, das classes desfavorecidas, que raramente teriam a possibilidade de se expressar por conta própria na gigantesca tela do cinema. Beco se interessa pela sabedoria popular, os provérbios e crendices, misturados aos programas sensacionalistas na tela da televisão, ou ainda às letras românticas das canções bregas. Tudo ao redor inspira sentimentalismo e abandono da racionalidade – vide o homem adulto chorando de felicidade com sua nova camisa de futebol e a cliente cantando uma música sobre o prazer de ser a amante, ao invés da esposa. Neste lugar, ninguém é julgado pela aparência ou pelas ideias, algo que Cavalcante busca reproduzir em suas interações. Ironicamente, esta espécie de microcosmo cortado da sociedade reflete muito bem seu segmento social. Em cada conversa descompromissada, reflete-se a composição das famílias, os problemas no trabalho, a descrença na política.

Assim, ao invés de um propor olhar sociológico, o projeto revela uma abordagem próxima, de igual para igual, buscando apagar a distância hierárquica essencial entre o quem filma e quem é filmado. Obviamente, ainda há uma seleção de ângulos (privilegiando rostos e corpos) e uma montagem bastante eficaz em seus cortes secos, mas o cineasta expõe suas perguntas tanto quanto as respostas, incluindo no produto final momentos em que os colegas de bar o interpelam ou criticam. A equipe conseguiu criar intimidade suficiente para o procedimento não afetar a dinâmica singular daquele espaço: ninguém parece se comportar para a câmera, muito pelo contrário. Mesmo sem espiar as pessoas a distância, a câmera ainda soa invisível lá dentro, o que desperta generosa dose de leveza e humor ao documentário.

Uma escolha que chama muito a atenção para si própria diz respeito ao controle das luzes pela direção de fotografia. É difícil compreender porque Cavalcante e o diretor de fotografia Camilo Soares optaram por tons tão contrastados, escurecendo parte significativa daquele espaço, mesmo à luz do dia. A consequência é o mergulho de muitos rostos e corpos, a maioria deles negros, numa escuridão indistinta. Ora, para um trabalho tão focado no humanismo, não seria interessante manter as expressões de todas aquelas pessoas, ao invés de reduzi-las a silhuetas? De mesmo modo, pode-se questionar a escolha das conversas apenas com homens, quando havia tantas clientes femininas ao redor, que talvez trouxessem uma experiência diferente do contato diário com homens alcoolizados. Outro aspecto curioso é a eleição de um “protagonista”, rumo ao final. Um dos homens entrevistados retorna à imagem, desta vez com informações interessantíssimas a oferecer.

Por mais que a história seja valiosa, e permita ao espectador se questionar sobre a veracidade suposta nos documentários, ela destoa demais do registro inconsequente obtido a partir das outras conversas, como se o roteiro rompesse com sua própria estrutura e desviasse seu tema no terço final. Este homem fascinante ameaça roubar o filme para si, estabelecendo uma hierarquia pouco pertinente ao dispositivo tão igualitário até então. Ressalvas à parte, Beco instaura um bem-vindo olhar de empatia aos “zé ninguéns”, como um dos personagens batiza a si próprio, num mecanismo misto entre conversa fraterna, confessionário e sessão de terapia, sem freios nem tabus. Neste espaço seguro, os homens podem falar sobre suas dores e seus remorsos, sobre a fé em Deus e a importância de viver cada dia sem questionar o dia seguinte. O cineasta resgata uma trajetória humanista cujo valor se esconde na aparência de modéstia, apesar de revelar um panorama multifacetado da marginalidade pernambucana.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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