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Sinopse

Na cidade de Quebec, um impasse de 78 dias opõe duas comunidades Mohawk ao crescente movimento de extrema-direita e às forças policiais. Uma pré-adolescente descobre o mundo adulto em meio à violência e à xenofobia, enquanto aprende a se impor dentro da própria família.

Crítica

O universo retratado em Beans: A Pequena Guerreira (2020) se assemelha a uma ficção pós-apocalíptica. Uma família não consegue sair de casa por medo de ser atacada nas ruas. Há agressores, policiais, pessoas raivosas em cada parte da cidade. Não se encontra comida com facilidade, nem se pode locomover de carro sem ser parado, e possivelmente agredido. Os meios de comunicação são falhos, parciais, e aumentam os ecos do sensacionalismo. Há muita raiva, caos, indignação. No entanto, a trama aborda fatos que ocorreram na região do Quebec, em 1990, quando grupos de extrema-direita e forças policiais se opuseram aos direitos da comunidade Mohawk. Os argumentos dos brancos reproduzem o amálgama de xenofobia, racismo e elitismo encontrado em outras partes do mundo – vide o Brasil com suas comunidades indígenas e suas minorias étnicas. Os canadenses brancos da época reclamavam de “privilégios” dos indígenas, defendiam que ficassem sem comida nem direitos, e que fossem agredidos como represália aos supostos “ataques” que representariam à soberania nacional. Está em jogo não apenas a identidade canadense, mas a capacidade de aceitação do outro, dentro de um dos países mais conhecidos no mundo pela tolerância à alteridade.

Tracey Deer, uma cineasta mohawk, representa o conflito não apenas pelo olhar das comunidades minoritárias, mas também pelo ponto de vista feminino e infantil. A estratégia não é nova, porém se revela funcional ao apresentar a barbárie dos adultos através do distanciamento de uma criança incapaz de compreender por que parte do país defende sua morte. Ao invés de rebater o raciocínio das partes adversas, o filme se preocupa em primeiro lugar com a construção da subjetividade mohawk, através do retrato de uma família comum, não particularmente rica nem pobre, alienada ou profundamente militante. Pelo retrato da universalidade, somos convidados a nos enxergar na jovem Beans (Kiawentiio) ao longo de sua jornada de autodescoberta. Deer poderia apelar para os traços culturais que compõem a riqueza única de sua comunidade. No entanto, ela privilegia a empatia e o entendimento, ao sugerir que aquela família seria igual a qualquer núcleo amoroso e protetor. Trata-se de um cinema humanista, no sentido de se comunicar com o espectador por meio do convite à identificação. A imagem se torna espelho: identificamos nossas crises da adolescência, os conflitos familiares, afetivos e hormonais através da jornada de uma garota que, por acaso, pertence a uma comunidade minoritária no país.

A configuração afetuosa não impede que a estrutura se torne esquemática, mesmo maniqueísta. Diversas cenas expõem a violência brutal de comunidades racistas contra Beans e seus pais. No entanto, há pouca variedade dentro deste retrato: a quase integralidade dos brancos se torna raivosa e igualmente fascista, enquanto a quase integralidade dos mohawks é formada por vítimas e sobreviventes. Pequenos indícios, como a atendente de um supermercado ou a diretora de uma escola de elite, sugerem permeabilidade entre os grupos. Afinal, haveria graus diferentes de aceitação das diferenças étnicas, não? A luta pela sobrevivência, sobretudo pela parte da mãe da família, Lily (Rainbow Dickerson) se aproxima de um apelo ao martírio – afinal, a mulher está em fase avançada de gravidez, e mesmo assim participa das barricadas, corre entre a floresta, enfrenta policiais, acelera o carro em tentativa de fuga. Há certa incoerência nas estratégias de Lily e do pai, que se dirigem a caminhos onde obviamente existem opositores, e parecem surpresos quando encontram os fascistas onde já se sabia que eles estariam. A ingenuidade se justifica no olhar da garotinha, mas soa idealizada, enquanto sinônimo de pureza e virtude, no olhar dos pais.

A narrativa melhora consideravelmente quando sugere nuances no embate de “nós contra eles”. Em meio à sua vida de conforto financeiro, Lily profere frases que se assemelham ao moralismo do homem branco, e representam certo grau de xenofobia internalizada: “Se queremos respeito, temos que nos comportar respeitavelmente”, por exemplo. Em paralelo, o contato de Beans com adolescentes mais rebeldes, de menor suporte financeiro, corresponde a outra descoberta importante da menina no que diz respeito às dificuldades do mundo. Não por acaso, os melhores momentos se encontram no embate entre a pré-adolescente comportada demais, com seu cabelo preso em rabo de cavalo e roupas de agasalho rosa, e April (Paulina Alexis), garota bruta, porque fruto de um sistema brutal. O roteiro chega a sugerir que os cidadãos reproduzem a violência instaurada pelo sistema, num conceito sociologicamente interessantíssimo que, no entanto, jamais se aprofunda. Isso ocorre porque as caracterizações ainda são estereotipadas: seja em figurinos, acessórios, ou na direção de atores, acentua-se os traços físicos e personalidade um grau acima do realismo, em busca da exemplaridade didática. Este não é um filme de nuances, e sim de ensinamentos.

No elenco, Kiawentiio talvez soe travada no início da trama. À medida que a personagem tenta soar mais agressiva e sexualizada, o filme a atriz encontram formas de respiro, o que se traduz em novas possibilidades de jogo cênico. A pré-adolescente então demonstra apropriação desengonçada dos códigos adultos, algo muito apropriado às inseguranças do amadurecimento. Quando Beans endurece suas convicções, a duras penas, ou quando April demonstra ternura, o filme atinge seus melhores momentos, por conseguir navegar entre os extremos. A mão da direção é excessivamente pesada no retrato da violência – vide o enfrentamento nas barcas e no supermercado – porém privilegia a clareza sobre qual lado se encontra a direção, e qual mensagem quer passar. Não há dúvidas de que o filme pretende se comunicar sobretudo com os espectadores não-mohawk por meio da sensibilização, razão pela qual Deer carrega um pouco nas tintas morais e sentimentais. Enquanto exercício de gênero, atinge-se um interessante road movie da imobilidade, no qual os personagens estão constantemente dentro de carros, em estradas e pontes, mas jamais conseguem sair. A tentativa frustrada de fuga literal da cidade representa muito bem a tentativa de fuga, ou de contorno quase utópico, dos dilemas ideológicos da nação.

Por fim, resta uma denúncia pungente, apoiada sobre uma análise política pouco aprofundada: a certa altura, uma prima militante da família simplesmente anuncia o término dos confrontos: “Acabou! Chegaram a um acordo!”. No entanto, jamais descobrimos ao certo como este acordo foi estabelecido, e sob quais condições. O que ocorreu com este núcleo fascista desde 1990? Como a comunidade mohawk viveria deste então? Quais foram as origens sociais e econômicas deste impasse? De que maneira a política institucional agiu para conter o problema, ou foi conivente com a exclusão social? Há representatividade mohawk na política local? Rápidos letreiros finais ressaltam a superação do conflito, sem se atardar sobre as circunstâncias dos mesmos. O filme acredita que, se a pré-adolescente não compreende nuances políticas, o espectador também não deveria compreendê-las, visto que enxergamos o mundo pelos olhos de Beans. A estratégia se revela coerente, ainda que pouco afeita à reflexão mais ampla. Mesmo assim, prega um cinema otimista, crente na superação de obstáculos por meio da conciliação entre opostos.

Filme visto online no Festival de Toronto, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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