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Sinopse

Lise é uma jovem vivendo no fim do século XIX com sua família de fazendeiros. Ela sonha em estudar, o que provoca a ira do pai e o medo de um castigo divino em resposta a tamanha ousadia. Na noite em que sua mãe dá à luz num parto complicado, complicações ameaçam a saúde da matriarca. Para todos ao redor, a culpa da possível morte será de Lise.

Crítica

Por que existem desastres naturais e tragédias familiares? Por que um Deus bondoso e todo-poderoso dizimaria comunidades inteiras e deixaria famílias órfãs? Para alguns padres e pastores, tornados e tempestades são resultados da ira divina contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em episódios recentes da história norte-americana, o terremoto no Haiti foi atribuído a um “pacto com o Diabo”, e a Covid-19 foi associada ao castigo divino por nossos pecados. Curiosamente, nas bocas destes porta-vozes, Deus expressa apenas pensamentos que condigam com seus preconceitos - a divindade se adequa às crenças humanas, não o contrário. Em Assim Como no Céu (2021), as complicações de um parto no fim do século XIX são imputadas à vontade da filha mais velha em estudar, contrariando os ensinamentos bíblicos de submissão ao homem e função doméstica. Conforme a hemorragia se agrava, a numerosa família vira os olhos de reprovação a Lise (Flora Ofelia Hofmann Lindahl). A própria menina cogita ser responsável pela eventual morte da matriarca, por ter pego emprestado uma presilha de cabelo sem pedir permissão. As prioridades e medidas do castigo supremo são bastante curiosas.

A culpabilidade cristã, fundamental no controle do rebanho e na reprodução de uma política de vigilância e punição por parte dos próprios indivíduos, constitui o motor de conflito da produção dinamarquesa. A fé se opõe à razão com profundo senso de ironia: apesar do forte sangramento, a mulher recusa o chamado do médico porque sonhou que a chegada de um profissional provocaria a sua morte. Para ela, sonhos valem mais do que a ciência; por isso, grita de dor madrugada adentro enquanto espera para ter suas rezas atendidas por Deus. O medo profundo do falecimento retira o véu de ceticismo das crianças e dos adultos ao redor, que passam a lembrar a existência de fantasmas e listar os minúsculos erros de percurso capazes de justificar o castigo dos céus. Passeando pela floresta, Lise enxerga uma tempestade vermelha, gotejando sangue sobre seu rosto. Ao longo de poucas horas de narrativa, ela e suas irmãs lançam hipóteses, rezam, riem e depois se arrependem de ter rido. Elas choram, fortalecem-se, assistem ao calvário da mulher coberta de sangue e depois se afastam assustadas. O roteiro desenvolve uma noite de profunda angústia causada pela desinformação e a ignorância, aliadas a boa dose de manipulação psicológica por parte das doutrinas religiosas. 

A diretora Tea Lindeburg concentra a narrativa somente em mulheres. Na chácara vizinha, um garoto foi deixado sozinho pelos familiares. No pasto, um adolescente órfão cuida dos animais. Na cidade, o pai trabalha com outros homens. Em outras palavras, as figuras masculinas são enviadas à distância. Enquanto isso, as mães, tias, primas e irmãs limitam-se ao espaço doméstico, preocupando-se em lavar os lençóis sujos e preparar a sopa enquanto a morte se anuncia no cômodo ao lado. O roteiro explora a sobrecarga da função feminina em sociedades conservadoras, mantendo a câmera dentro dos cômodos simples, porém espaçosos e bem iluminados. Lise se transforma nos “olhos da casa”, espiando cada ação pela batente das portas, testemunhando confissões e segredos - a noção de privacidade era diferente na época. Ela possui afeito e vitalidade ímpares, transmitidos com segurança pela ótima atriz principal. O filme coloca o espectador na função de cúmplice do morticínio e dos abusos, entrando e saindo pelos quartos e cozinhas, atravessando pátios e observando através das janelas. O ritmo é dinâmico apesar do conflito baseado na espera pelo possível falecimento da mãe. O anúncio da tragédia a posteriori teria peso evidente, porém presenciá-la ao vivo, minuto após minuto, torna a experiência muito mais forte.

Além do espaço interno, Assim Como no Céu faz uso expressivo das forças da natureza como símbolos do estado de espírito das meninas. Após uma prece solicitando misericórdia, um forte vento passa pelas planícies, sendo interpretado como resposta positiva ao pedido. Outras ventanias despertam a interpretação de uma revanche divina contra a sexualidade discretamente manifestada pela adolescente. A noite na floresta é filmada de modo assustador, próximo de uma fábula de horror, ao passo que o crepúsculo avermelhado reforça a melancolia da heroína. Os planos aéreos revelam a amplitude do pasto, a solidão destas pessoas num cenário isolado e sugerem o olhar de uma divindade plácida diante da provação alheia. O rosto de Lise se cobre de suor, lágrimas, chuva, sangue, feno, além de receber tapas do pai e beijos do colega. A confusão emocional entre a esperança e a desilusão, entre pulsões de vida e morte, se condensa no corpo da jovem elevada ao patamar de estopim do conflito. Não por acaso, o bebê nascido com saúde será entregue aos braços da protagonista, em forma de presente (pela sobrevivência da irmãzinha) e castigo (a atribuição postiça da função materna). Morte e vida dialogam cena após cena.

Em virtude da complexidade política e social desta fábula, desperta-se certa apreensão quanto ao desfecho. Afinal, o destino oferecido aos personagens determinaria o ponto de vista do discurso: seria otimista, pessimista, ou então punitivista e perverso como o Deus implacável? O roteiro encontra uma forma inteligente de conclusão em aberto, sem fornecer falsas esperanças, mas tampouco convertendo a protagonista numa mártir piedosa. Lindeburg adota a precaução de inserir a sina de Lise num contexto amplo, razão pela qual o plano aéreo se justifica ao final. A vontade de emancipação da garota à frente de seu tempo se choca com forças mais potentes do que sua mera convicção. O longa-metragem representa este embate através do símbolo da presilha de cabelo e da enxada nas mãos. No plano geral, a heroína ilustra o caso de tantas meninas em posição semelhante - não há nada excepcional no destino que lhe é conferido. Em contrapartida, plantam-se sementes para uma tomada de consciência feminina em relação ao fardo de procriar, cuidar da casa e das crianças, baixando a cabeça aos homens, padres e deuses. O estranhamento deste dispositivo representa um posicionamento político por si próprio, dentro das possibilidades de ação verossímeis ao século XIX.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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