Crítica


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Sinopse

Histórias de membros da comunidade LGBTQI+ que integram alguma instituição religiosa.

Crítica

O ponto de partida deste documentário é fascinante. O diretor Victor Costa Lopes decide investigar de que maneira indivíduos LGBTQs religiosos convivem com grupos conservadores, e como interpretam os dogmas contrários à sua própria existência ou identidade. O cineasta conversa com homens e mulheres, cisgêneros e transgêneros, jovens ou idosos, de diversas religiões: católica, evangélica, espírita, candomblé. A princípio, há diversidade e representatividade suficientes para um amplo debate sobre a colisão entre liberdade individual e as normas de uma comunidade, ou entre o princípio do prazer e o princípio da moral. No entanto, para um projeto baseado na análise de conflitos, o resultado é surpreendentemente plácido e consensual. As Cores do Divino (2020) dialoga com pessoas muito diferentes para se ater às mesmas constatações: sim, os livros sagrados impõem entraves à liberdade de gênero e sexualidade, mas por compreenderem que a relação com a divindade implica amor e aceitação do próximo, acreditam pertencer aos grupos religiosos.

Por mais louvável que seja a abertura à escuta, o dispositivo cinematográfico se revela simples até demais. A montagem justapõe uma dezena de casos, um após o outro, em longas cenas resumidas a um plano fixo central. Os personagens conversam com o cineasta, narrando histórias típicas dentro deste contexto: o receio de não serem aceitos, a pressão para se esconderem, a tolerância apenas parcial da homossexualidade, a existência de grupos alternativos ou igrejas inclusivas para pessoas lésbicas, gays, travestis e transexuais. Não há relatos fortes, no sentido de comoventes, enraivecidos, fascinados: as pessoas transparecem um distanciamento desafetado, sem ressentimento. Elas afirmam terem passado por momentos ruins, até se encontrarem em seus corpos e identidades, e viverem muito bem atualmente. O projeto introduz um teor tão otimista quanto ingênuo, por não questionar o processo de melhora, reservando o conflito a uma esfera já resolvida, desconectada do presente. O espectador pode ter a impressão de que o Brasil se tornou um país tolerante, onde as pessoas se dão as mãos e mulheres transexuais são aceitas. De certo modo, busca-se ilustrar um mundo ideal, ao invés de estudar os obstáculos introduzidos por tantos grupos religiosos país afora.

Mesmo quando um garoto narra a expulsão da igreja que frequentava, o teor se revela incapaz de provocar qualquer sobressalto na montagem rigidamente linear. Os blocos de conversa limitam os personagens a estudos de caso: assim que cada um narra sua trajetória, sempre da dificuldade à superação, ele desaparece do filme para ceder espaço a um novo indivíduo LGBT ostentando uma narrativa semelhante. A montagem poderia entrelaçar estes relatos, recuperar novas partes da jornada em algum momento adiante, fazer com que a fala de algum deles dialogue com a fala de outro. Ora, estes segmentos independentes são desprovidos de diálogo interno, além de se revelarem repetitivos. Tem-se a curiosa impressão de que todas as religiões brasileiras são equivalentes: evangélicos interpretariam a homossexualidade da mesma maneira que espíritas ou candomblecistas. As especificidades de cada crença desaparecem, assim como as dificuldades específicas de homens ou mulheres, de pessoas cisgênero ou transgênero em cada caso. A religiosidade se torna questão de aceitação de si mesmo e de superação pessoal, ao invés de uma compreensão coletiva. Em outras palavras, a direção se apropria de um tema caro às ciências sociais (a sociologia e antropologia em particular) para despir o olhar de qualquer viés científico ou mesmo analítico. O que a mulher lésbica e católica pensaria dos versos do Levítico? O que outras mulheres transexuais do candomblé diriam sobre o vestuário exclusivamente feminino e cisgênero? Como a relação com a família, os namorados e maridos, ou ainda com a política e o trabalho seriam afetadas pela compreensão religiosa? Não sabemos.

Isso ocorre porque As Cores do Divino se recusa a buscar elementos que os entrevistados não forneçam por conta própria – e os personagens, por mais simpáticos e honestos que sejam, se prestam a poucas reflexões. A câmera sequer se levanta da mesa onde os personagens estão sentados para percorrer a casa, os cômodos, quanto mais acompanhar um dia inteiro na vida dessas pessoas, seu círculo de amigos, o caminhar pelas ruas. Se a intenção era defender a inserção de indivíduos LGBTQ na sociedade, por que filmá-los exclusivamente isolados, dentro de casas vazias, sem qualquer forma de interação com outras pessoas? Seria fundamental acompanhar estas pessoas em suas igrejas, cultos, tempos ou qualquer outro local de adoração. Ao invés de se contentar com o que têm a dizer, o cinema teria a capacidade de registrar por conta própria os limites da aceitação e os resquícios de preconceito. Uma mulher lésbica narra o encontro com um grupo de “feministas religiosas”, enquanto outra fala sobre panos que cobrem o aparelho reprodutor de mulheres no candomblé. Por que não vemos estes momentos? Ironicamente, na tentativa de desvendar um tabu, o filme o reforça, por falar sobre a prática religiosa de pessoas LGBTQs sem representá-la em imagens.

Deste modo, o filme tem poucos comentários a oferecer por conta para além da constatação de que essas pessoas existem. Muitos depoimentos ostentam uma homofobia internalizada, perceptível na crença de que gays, lésbicas e transexuais já ganharam direitos, mas exigir igualdade seria excessivo (a exemplo da mulher trans que reprova o beijo entre gays em público). As conversas demonstram receio em utilizar termos relacionados à sexualidade, privilegiando eufemismos. Diversos elementos de estudo poderiam ser retirados destes casos, mas caberá ao espectador tecer qualquer comentário a partir do acúmulo bruto de depoimentos, como se ainda à espera de uma articulação criativa de montagem e discurso. O projeto possui as melhores intenções, porém se contenta com uma quantidade insuficiente de recursos, permanecendo na superfície de um tema complexo. Não é possível falar sobre diversidade religiosa e diversidade sexual no Brasil sem inseri-la num contexto histórico, sem compreender a sua ligação com os momentos sociais e grupos políticos no poder – pelo menos, não de maneira satisfatória. Estes personagens poderiam gerar uma discussão muito mais apaixonante do que aquela representada pela montagem final.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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