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Desde os primórdios do cinema, muitos diretores adotam a linguagem cinematográfica como ferramenta psicanalítica ou mesmo confessional, algo que se mostra recorrente na esfera ficcional, porém, talvez ainda mais abundante na documental. Em As Boas Intenções, seu primeiro trabalho, a jovem cineasta italiana Beatrice Segolini, de apenas 26 anos, envereda por esse caminho, realizando um documentário que investiga seu próprio passado. O longa, co-dirigido pelo alemão, e também estreante, Maximilian Schlehuber, apresenta o retrato de uma família disfuncional assombrada pelo terror da violência doméstica, materializado na figura do pai de Segolini, cujas agressões constantes contra ela – bem como contra a mãe e os dois irmãos – terminaram por fazer com este fosse expulso de casa, permanecendo recluso até hoje.

A encenação de um teatro de bonecos, que abre o filme rememorando um episódio extremo de agressividade, na qual o pai assume a forma de um tiranossauro, com os irmãos e a mãe sendo representados por animais como bois ou cavalos, deixa transparecer, em seu tom pueril, o olhar totalmente pessoal de Segolini, moldado pelo trauma de infância. É buscando confrontar essas lembranças que a diretora retorna à sua casa, propondo a discussão com seus familiares, na tentativa de expor as perspectivas de cada um sobre o assunto tabu e, quem sabe, cicatrizar feridas. A seu modo, todos parecem dispostos a contribuir com o projeto, ainda que com reservas e mantendo um posicionamento quase sempre defensivo antes de, gradativamente, deixarem aflorar seus reais sentimentos.

Incitando o debate, Segolini tenta compreender a postura de seus familiares: A mãe, provavelmente a principal vítima do comportamento violento do marido, se mantém resignada durante quase todo o tempo, enxergando os ocorridos como incontornáveis. Uma visão compartilhada pelo irmão mais novo, devido justamente à proximidade – ainda morando na mesma casa que a mãe – que procura encontrar justificativas para o comportamento do pai, afirmando que ele também é um ser humano sensível e defendendo a manutenção dos laços, por serem eternos, acima de tudo. E, por fim, o irmão mais velho, desde o início o mais avesso à ideia de revirar o passado, expondo-o via documentário, e que exibe uma conduta de negação, se valendo do humor como mecanismo de defesa – desviando do tema com piadas ou se considerando “salvo” das perguntas pelas ligações recebidas no celular.

Como não poderia deixar de ser, Segolini também se expõe, colocando seu próprio papel como cineasta na linha tênue das boas intenções mencionadas no título. Afinal, por mais que seu intuito seja o de alcançar a superação dos traumas, parcial ou plenamente, oferecendo alguma paz aos envolvidos, o enfrentamento desses fantasmas íntimos – que inclui também a trágica morte de uma irmã recém-nascida – leva Segolini a assumir o risco de tornar tudo ainda mais doloroso para a família. Além disso, abre-se também a possibilidade da leitura de um conflito entre o propósito do bem coletivo e a realização pessoal/profissional da diretora. Esses questionamentos soam inevitáveis, tal qual a proximidade de Segolini com o material, que impossibilita o distanciamento mais reflexivo e, por consequência, compromete a possibilidade de construção de um panorama mais amplo sobre a grave questão da violência doméstica.

Essas ressalvas, contudo, não anulam os méritos da obra, que, acima de tudo, funciona graças à dinâmica familiar vista na tela. Os encontros de Segolini com a mãe e os irmãos, quase sempre à mesa do jantar, se mostram intensos, mas também carregados de humor, refletindo os arquétipos familiares italianos tão difundidos pelo cinema local em suas tragicomédias. Algo que torna a jornada mais cativante. O bom trabalho de montagem, especialmente no que se refere ao uso das imagens de arquivo pessoal, também merece elogios, servindo para enriquecer a construção dos integrantes do retrato apresentado – com destaque para a representação do patriarca como uma figura onipresente e opressora apenas através dos fragmentos que o mostram assistindo a partida de basquete dos filhos.

Mas é mesmo no aguardado confronto da diretora com o pai que reside a grande força de As Boas Intenções. A incômoda sequência, cercada de tensão e de emotividade, e preenchida por frases inacabadas e silêncios expressivos, exala uma sinceridade palpável. Essa qualidade humana, responsável por evitar um desvio da narrativa para demonizações e julgamentos definitivos, se mostra a mais significativa do trabalho de Segolini. Trabalho esse que mesmo não rompendo sua bolha particular e restritiva, ainda é capaz de levantar tópicos pertinentes que ressoam após o fim da projeção.

 

 

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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