Crítica


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Sinopse

Nos anos 1990, a Argentina enfrenta forte crise econômica. Amanda, garota de 10 anos de idade, se divide entre a casa da mãe Cecilia, uma mulher responsável, casada com outro homem, e o pai Gustavo, roqueiro que vive de bicos numa loja de discos. Quando a mãe anuncia a decisão de se mudar para o Paraguai, Amanda precisa decidir se vai com a família, ou permanece com o pai.

Crítica

Este drama argentino é baseado num mundo de opostos. Por um lado, existe o universo da mãe Cecilia (Jazmín Stuart), bastante responsável, vestida em roupas modestas, preocupada com a alimentação e a saúde dos três filhos pequenos. Por outro lado, há o mundo do pai Gustavo (Javier Drolas), membro de uma manda de rock, que fuma maconha em frente das crianças, serve pizza aos pequenos e falta aos compromissos escolares. O universo dela é menos empolgante, porém seguro. O universo dele constitui uma festa sem fim, ainda que esteja fadado à frustração – eventualmente, as promessas divertidas do roqueiro não serão cumpridas. Enquanto as crianças se dividem entre as casas de ambos os pais, o filme privilegia a rotina atípica de Gustavo. Talvez a diretora Ana García Blaya enxergue opções cinematográficas mais empolgantes no cotidiano da loja de discos e nos fins de semana à beira da piscina com os amigos. O resultado poderia ser lido enquanto homenagem ao próprio pai da autora, membro de uma banda de rock. Através desta crônica, ela abraçaria o estilo caótico da criação paterna e acertaria as contas com o passado.

É interessante que o roteiro multiplique os pontos de vista. Embora parte da trama seja vista pelo olhar de Amanda (Amanda Minujín), a câmera se alterna, ora adentrando a perspectiva do pai, ora permanecendo com a mãe. Deste modo, o resultado evita mergulhar por completo tanto no amadurecimento da menina – caso em que o olhar subjetivo dela seria mais apropriado – quanto na crise da paternidade de Gustavo, confrontado à possibilidade de ter a guarda da menina mais velha. Adota-se uma postura externa, admirando a todos com distanciamento (as namoradas do pai, o novo marido da mãe, a vida do tio Néstor), evitando tomar partidos morais. Há uma forma de respeito neste posicionamento, capaz de abrir o filme com um plano de detalhe nos olhos cheios de remela, para então observar as crianças por um viés naturalista, de câmera na mão e ações de aparência documental. Blaya busca estar perto demais dos personagens e livre o suficiente para saltar de um rosto ao outro assim que necessário. A sequência da volta do sítio se torna exemplar neste sentido: o foco inicial se encontra no pai motorista, para então saltar à mãe preocupada, e terminar com a desorientação das crianças.

Blaya sabe manejar as dinâmicas coletivas, orquestrando meia dúzia de personagens em cena ao mesmo tempo. Ela assume o caos das imagens, o entra e sai de amigos na casa, as camisinhas apanhadas no chão pela filha pequena, os clientes circulando pela loja de discos. As Boas Intenções (2019) se fortalece nas interações ruidosas, ampliando-as ao máximo com trilha sonora punk rock, inserções de vídeos caseiros da diretora, cores pastéis e dessaturadas. Apesar de uma condução linear e clássico-narrativa, a cineasta introduz brincadeiras com a estética punk simplificadas pelo filtro da compreensão infantil. Amanda conhece toda a discografia das principais bandas de rock dos anos 1990 e toca guitarras imaginárias, copiando o pai-herói. No entanto, deseja ser adulta mais cedo, por cuidar dos irmãos menores e se imaginar como independente. Os letreiros em formato de rabiscos amadores e as decisões de uma filmagem “ao vivo”, efetuando mudanças bruscas de foco e enquadramento durante o plano, proporcionam uma estética da liberdade e da rebeldia, coerente com a leveza do projeto. A diretora navega entre uma modesta subversão, domesticada em termos de linguagem, para alçar um resultado acessível simultaneamente ao público médio e aos espectadores de festivais.

O elenco se mostra confortável com a estética dos excessos. Javier Drolas representa uma escolha inesperada para o jovem pai roqueiro, porém o ator se adapta bem ao personagem que poderia facilmente se converter na caricatura da irresponsabilidade. O intérprete atribui nuances a este homem desajeitado, porém atencioso à sua maneira. Jazmín Stuart, em chave oposta, evita a figura da mãe psicorrígida ao trabalhar a ternura na voz e os olhares expressivos. A cena do quase-beijo dentro do carro extrai o melhor de ambos os atores, revelando discretamente o passado afetuoso que a dupla já compartilhou um dia. A maior descoberta, no entanto, se encontra em Amanda Minujín, jovem atriz de uma desenvoltura impressionante em frente às câmeras, atribuindo nuances a cenas de grande complexidade psicológica, a exemplo das conversas separadas com pai e mãe sobre a mudança da família para o Paraguai. O projeto está pleno de pequenos instantes de graça: a música caseira de dois amigos, que subitamente adquire uma orquestração extradiegética suplementar, a alegria das crianças ao ganharem discos do Beatles.

Em oposição, alguns recursos facilitadores prejudicam o resultado: o processo para a obtenção de uma bolsa escolar ocorre com velocidade espantosa, assim como a mudança de apartamento de Gustavo. Por volta de dois terços da narrativa, o roteiro praticamente se esquece da mãe, quando teria sido importante dar atenção às dores dela durante o processo de separação. Pode-se acusar o resultado de condescendência com as atitudes controversas do pai, mas Blaya prefere abraçar os personagens tanto por suas qualidades quanto por seus defeitos. Ao evocar sua criação, a diretora assume um olhar materno, admirando com gentileza o pai, a mãe e a si mesma, protegendo-os através de uma cristalização no tempo. Ela imortaliza um instante preciso de sua história pessoal – a mudança de países, a descoberta de que Gustavo não seria capaz de cuidar dela – por meio do mosaico metonímico de sua família. Através do poder da narrativa cinematográfica, em termos de controle e seletividade do real, escolhe os trechos marcantes, como num álbum de retratos em que pudesse escolher apenas as melhores fotos. Menos do que uma representação realista da Argentina em crise, nos anos 1990, o drama proporciona um mergulho na memória afetiva do país.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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