Crítica

Aqui, Robinson Crusoé é um garoto que decide explorar os sete mares sem ao menos conseguir enfrentar, livre do enjoo, algumas ondas mais turbulentas. Após uma tempestade, ele naufraga e só se salva porque vai parar numa ilha inóspita, habitada por toda sorte de animais nativos. Portanto, As Aventuras de Robinson Crusoé preserva pouca coisa do livro ao qual se reporta como inspiração. Não fosse a reformulação das intenções do protagonista – no original ele é um mercador de escravos em busca de força de trabalho para seus canaviais no Brasil – há neste longa-metragem animado uma mudança capital no que concerne ao ponto de vista. Na obra escrita por Daniel Dafoe, o próprio Crusoé contava tudo em retrospectiva, lembrando-se das aventuras e perrengues passados nos quase trinta anos em que permaneceu isolado. No filme, dirigido por Vincent Kesteloot e Ben Stassen, o papagaio Terça-Feira é o nosso narrador.

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Embora aparentemente calcado no infortúnio desse jovem que precisa se adaptar à nova realidade em meio ao nada, As Aventuras de Robinson Crusoé é verdadeiramente protagonizado pelos animais que já estavam na ilha. Tem-se muito mais tempo deles em cena. Em princípio chamado de Mac, o papagaio Terça-Feira é a figura central do filme. Acompanhamos com muito mais interesse, ainda que não tanto assim, em virtude da condução apenas esforçada pelo roteiro preguiçoso, os anseios do pássaro que sonha em conhecer outras partes do mundo. O desejo do humano, de voltar a pisar na terra firme da sua amada Inglaterra, fica em segundo plano. Um casal de gatos assume o papel da vilania, oferecendo algum perigo aos amigos que rapidamente deixam para trás a desconfiança frente ao novo para estabelecer laços de fraternidade. Nem a mensagem edificante emplaca.

Embora do ponto de vista técnico haja pouco a ser criticado negativamente, já que tanto os recursos visuais quanto os sonoros possuem qualidades suficientes para rivalizar com produções ancoradas em estúdios maiores e, evidentemente, com mais condições financeiras, As Aventuras de Robinson Crusoé patina mesmo é pela trama banal e insossa. Ainda que os personagens possuam carisma, que seja ligeiramente divertido acompanhar os ciúmes de Kiki, a passarinha que se mantém boa parte do tempo cabreira quanto às intenções do humano recém-chegado, que a anta, o tatu, a porco-espinho, o camaleão e o simpático bode velho desempenhem bem o papel de “escadas” para os demais, falta vigor para além dos alívios cômicos. Nem uma tragédia específica possui força suficiente para levar o filme a outros caminhos, ou deflagrar realmente a ameaça que, em tese, os vilões deveriam representar à estabilidade do todo.

Há a construção coletiva de uma casa na árvore, local onde os próprios animais passam a morar, e uma série de outras adaptações que tratam de reduzir bastante o peso dos dramas que surgem. Robinson Crusoé não funciona como timão desta embarcação que faz água já diante das primeiras ondas, invariavelmente caminhando para o naufrágio. A importância dele é bastante minimizada, pois os destaques de As Aventuras de Robinson Crusoé são mesmo os tagarelas membros da fauna local. O filme tem momentos legais, principalmente quando os diretores Kesteloot e Stassen resolvem livrar a “câmera” da rigidez durante a tensão, apresentando movimentos que acompanham os voos de Terça-Feira, atingindo um resultado dinâmico no que diz respeito à construção da imagem. Fora isso, é uma animação genérica, que requenta expedientes de outras melhores. Proporciona entretenimento moderado, e só.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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