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Sinopse

Na Hungria, após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma nação de sobreviventes do holocausto tenta se curar através do amor. Em meio ao conflito nacional e ao trauma, um médico de meia idade e uma jovem menina de luto por familiares perdidos em campos de concentração formam uma conexão e ajudam um ao outro a retomar suas vidas.

Crítica

Este drama húngaro chama atenção inicialmente para seu caráter clássico dentro do que se esperaria de um tradicional melodrama de guerra. Uma imponente orquestra acompanha o caminhar de um médico pelas ruas. As imagens são dessaturadas, como convém a tantas representações de “mundos sem cor”, ou seja, de personagens abatidos. As conversas ocorrem por meias palavras entre personagens cabisbaixos. Estamos no término da Segunda Guerra Mundial, e o diretor Barnabás Tóth adota, a exemplo de muitos diretores, a estética austera em forma de respeito. Para personagens sisudos, um filme sisudo; para retratar a dor, um ritmo e uma imagem em estado permanente de luto. Aqueles que Ficaram jamais proporcionará uma catarse digna deste nome. O projeto sustenta a elegância discreta dos indivíduos que buscam seguir a vida normalmente enquanto a barbárie ocorre nos campos de concentração logo ao lado.

O discurso sustenta uma tese anunciada desde o início da narrativa, no caso, a ideia de que a vida “daqueles que ficaram”, ou seja, dos parentes das vítimas do Holocausto, é tão difícil quanto à das pessoas mortas e perseguidas. Seria impossível comparar e chegar a uma resposta definitiva, porém a grave formulação pretende mudar o foco para os supostos felizardos que, no entanto, passam os dias à espera dos pais, esposa e amigos desaparecidos. Por isso, escolhe como protagonistas dois “fantasmas” abandonados pela cidade: o ginecologista Aldo (Károly Hadjuk) e a adolescente Klára (Abigél Szõke). Ele perdeu a esposa, ela espera pelo retorno dos pais. A união entre eles se torna tão bela quanto óbvia: desde a primeira cena em que aparecem juntos, as trocas de olhares deixam claro que não se separarão mais. Tóth promove a superação simbólica do luto através da amizade, como se todos os sobreviventes do genocídio formassem parte de uma grande família invisível.

A ideia é delicada, além de ser conduzida com vigor pelos atores principais, especialmente Hadjuk, capaz de trazer uma variação impressionante ao personagem taciturno. No entanto, a sutileza se atenua pelo academicismo da direção. Aqueles que Ficaram faz questão de tornar o homem introvertido demais, enquanto a garota abraça o ápice da traquinagem juvenil. Ele se torna ainda mais responsável, e ela, ainda mais infantilizada, às vezes parecendo manifestar alguma forma de limitação psíquica. Tóth acredita que a proximidade entre eles se tornará ainda mais comovente diante do abismo separando ambos, por isso, acentua traços ao limite da caricatura. Uma dezena de cenas de abraço surge como resolução aos conflitos afetivos. Por mais comoventes que pareçam esses primeiros instantes, a insistência apenas revela a incapacidade do cineasta em buscar alternativas metafóricas à conciliação.

Em paralelo, os flashbacks com cores ainda mais dessaturadas exagera uma escolha estética extrema por si própria, e alguns paralelismos de montagem tornam a evolução da dupla um tanto superficial: quando Aldo enfim consegue um encontro amoroso, Klára também conhece um rapaz interessante na mesma noite. A política, representada por ameaças no rádio, demora demais a adentrar a trama de modo a interferir na vida da dupla. Durante dois terços da narrativa, o pai simbólico e sua filha adotiva se isolam numa bolha terapêutica de proteção mútua, o que contribui a aprofundar a construção de personagens, mas não ajuda na representação da dor de uma comunidade inteira durante a guerra. A ameaça de delação por colegas do partido, ou a interferência da polícia no prédio de Aldo aumenta a tensão, fazendo com que o privado enfim se confronte ao público, que as feridas de uma nação inteira invadam o apartamento onde se passa a maior parte da trama. É curioso que o roteiro opte por esta interferência tão tarde na trajetória dos personagens, como se temesse expô-los ao perigo. O carinho evidente de Tóth por Aldo e Klára faz com que os proteja, inclusive, de conflitos narrativos.

Rumo à conclusão, a proposta de superação beira o novelesco. Casamentos, namoros, festas em família e uma pesada maquiagem de envelhecimento entram em cena para garantir, ao espectador, uma ilusão de “felicidade para sempre”. Ironicamente, durante uma curta sugestão de erotismo entre os personagens, catalisada pelo medo da morte, o cineasta atinge uma metáfora muito mais potente sobre as identidades burlando as regras e estabelecendo contatos socialmente questionáveis para sobreviverem. Nesta curta cena, a pulsão de vida e de morte se misturam, e os personagens enfim abandonam a aura polida da produção inteira. Entretanto, esta é uma exceção: o filme não deseja chocar, apenas sugerir, com pudor, a dificuldade de se viver à espera dos familiares sequestrados. Por mais que se aplauda o respeito e a empatia, se ressente a falta de uma estética mais agressiva, capaz de representar uma dor igualmente violenta.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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