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Sinopse

Clara mora de frente para o mar no Aquarius, último prédio de estilo antigo da Av. Boa Viagem, no Recife. Jornalista aposentada e escritora, viúva com três filhos adultos e dona de um aconchegante apartamento repleto de discos e livros, ela irá enfrentar as investidas de uma construtora que tem outros planos para aquele terreno: demolir o Aquarius e dar lugar a um novo empreendimento.

Crítica

Desde a batalha contra o câncer nos anos 1980, Clara (vivida na juventude por Barbara Colen e na maturidade por Sonia Braga) é um exemplo de obstinação. Aliás, a resistência é o signo principal de Aquarius, mais recente longa-metragem de Kleber Mendonça Filho. O começo remonta a uma ocasião de comemorações, na qual se celebrou a vivacidade de uma tia que então completava sete décadas. Os anos se passam e a protagonista agora é uma senhora com idade semelhante a da aniversariante de antes, que mora na beira da famosa praia de Boa Viagem, no Recife. Jornalista e escritora, ela leva uma vida aparentemente tranquila, isso até começar a ser ostensivamente assediada por uma imobiliária que pretende pôr abaixo o seu prédio para construir no lugar um desses residenciais modernos com câmeras de segurança e todo o conforto defendido atualmente como necessário para o bem-estar. A luta de Clara contra a empresa é a sua nova empreitada para derrotar uma “doença” fortemente agressiva.

A excepcional trilha sonora se encarrega de potencializar o emocional em Aquarius, auxiliando, assim, a fazer dele não apenas incisivo no que diz respeito à abordagem da sanha expansionista e mesquinha que leva mais em consideração o capital financeiro, mas também sensível no que tange aos afetos e às suas ressonâncias. E a catalisadora disso é Clara, personagem plena nos diversos papéis que representa. Roberval (Irandhir Santos) é o salva-vidas responsável por zelar pela segurança marítima dessa mulher que, porém, não se intimida quando convidada a “nadar com tubarões”. Ler as alegorias é algo facilitado pela maneira inteligente e nada ordinária com que Kleber Mendonça Filho relaciona fragmentos simbólicos e passagens literais. A engenhosa encenação conta ainda com a utilização de sequências aparentemente sem peso determinante ao desenvolvimento dos conflitos centrais, mas que, na verdade, são imprescindíveis, pois estofam tudo de genuinidade e organicidade.

Como em seu filme anterior, O Som ao Redor (2012), o cineasta explora o potencial expressivo do som em consonância com o da seara imagética, evitando redundâncias e tornando a narrativa mais fluida. Em Aquarius está novamente presente a preocupação com as decorrências nefastas da reconfiguração urbanística que enche o horizonte de arranha-céus e extirpa a personalidade das cidades em função de um pretenso progresso. Tal constatação está aqui mais intimamente ligada à concepção e ao comportamento das pessoas, principalmente ao de Clara, ela que se esforça para manter vivas as lembranças. Uma sequência que exemplifica bem a valorização da memória afetiva, elemento impregnado nos ambientes e nos objetos, é a reminiscência que transforma a cômoda da sala numa espécie de chave ao passado. Clara vê o apartamento no edifício Aquarius como parte indissociável da criação dos filhos, do casamento, da trajetória profissional, enfim, da sua vida. É uma atmosfera pulsante.

As jogadas escusas da imobiliária, corporação que vai de um polo ao outro, primeiro, recorrendo a orgias no andar de cima e, segundo, promovendo cultos religiosos no mesmo pavimento, ambos rituais barulhentos cuja intenção é espantar a derradeira proprietária, são sintomas da penhora da ética em função do dinheiro. Aquarius dispara certeiramente em várias direções, tanto às sociais quanto às íntimas. Faz uma análise contundente acerca dos efeitos colaterais dos ditames do mercado, arrolando, ainda que timidamente, religião e jornalismo como cúmplices dessa realidade em que virtudes se tornam moeda de troca, sem, todavia, descuidar da singularidade de Clara, protagonista que não se presta a reducionismos, tornando-se mais complexa na medida em que é deflagrada sua multiplicidade. Interpretada com brilhantismo por Sonia Braga – um trabalho digno de prêmios, diga-se de passagem –, Clara é mãe, amante, amiga, esposa, avó, confidente, enfim, mulher que resiste, sem negar o futuro e suas inovações, mas ciente do imenso valor dos espaços (os metafóricos e os literais) já consolidados, sobretudo quando incrustados de recordações.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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