Crítica


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Sinopse

Das precárias águas congeladas do Lago Baikal, na Rússia, à Miami sofrendo as consequências do Furacão Irma, até as Cataratas Ángel, na Venezuela, quais são as muitas personalidades da água? A beleza transformadora e o poder bruto, a variedade de emoções humanas que surgem através da força do elemento mais importante da Terra.

Crítica

A primeira impressão diante deste projeto pode ser enganosa. Aquarela se assemelha, a princípio, a tantos outros documentários que veneram a beleza e a força da natureza, destacando sua grandiosidade e seus mistérios, em paralelo com nossa pequeneza enquanto humanos ocupando um planeta muito mais vasto que cada um de nós. Este olhar costuma ser plácido, ao mesmo tempo progressista (por defender o valor dos recursos naturais) e conservador (por idealizá-lo de modo espiritual-transcendental, e portanto acrítico). Este costuma ser o ponto de vista das reportagens e dos programas televisivos, para os quais a imagem serve de paisagem, pano de fundo, numa espécie de beleza consensual e inofensiva – uma natureza sem contexto social nem histórico.

Ora, o projeto dirigido por Victor Kossakovsky foge em partes a esta configuração. Primeiro, ele traz um ponto de vista distanciado, longe do didatismo das cartas de amor às florestas e rios. O espectador observa em grandes planos gerais as geleiras próximas à Groenlândia por onde se deslocam minúsculas figuras humanas ao horizonte. Não há letreiros, narração, diálogo nem depoimentos. Nós sequer conhecemos o nome das raras pessoas em tela, ou mesmo dos locais filmados. Surge então a imagem de um carro submerso num lago congelado. Descobrimos que os pequenos homens são membros de uma equipe de resgate, efetuando o trabalho delicado de recuperar o veículo sem serem tragados pelas águas. Aos poucos, as imagens que se ofereciam pelo prazer estético começam a formar uma narrativa. Há personagens e conflitos no plano de socorro a indivíduos afogados.

O documentário abandona então o carro e a equipe de resgate para olhar outras zonas de gelo, e então as avalanches, as ondas, as cidades vizinhas, os furacões, as grutas. Aquarela parte de um ponto bastante específico, silencioso e próximo de um cinema conceitual, apenas para abrir seu escopo e englobar os perigos da natureza como um todo, em diversos locais do mundo. O aspecto local se transforma em mundial, o caso específico torna-se exemplo de tantos outros episódios de barcos lutando contra a tormenta e cidades engolidas pela força dos ventos. A noção de um foco, ou ainda de um mergulho em profundidade num cenário desconhecido, é abandonada em prol de um discurso muito mais amplo sobre a impossibilidade de controlar a natureza. O derretimento das geleiras seria uma consequência do aquecimento global? Uma decorrência das ações humanas, um sinal de nossa soberba diante do desconhecido? Não se sabe. Emudecido do começo ao fim, o filme deixa que o espectador tire suas próprias conclusões, tanto sobre o tema, sobre o protagonismo e mesmo sobre o ponto de vista a partir dessas imagens.

O que Kossakovsky teria a dizer, afinal, a respeito da fúria das ondas e do vento? Se podemos louvar o diretor por não guiar seu espectador de modo paternalista, também podemos criticá-lo por se ausentar do debate. De que adianta lançar tantas imagens grandiosas sem proporcionar uma costura capaz de delimitar um discurso a respeito? A propósito, a montagem pode soar um tanto aleatória, ora buscando uma plasticidade exagerada (a câmera lenta, o rock intenso na trilha sonora, a modificação da cor das ondas do mar), ora filmando com o desapego de quem não pretende interferir naquele ambiente (a câmera no meio do tornado). É provável que o documentário seja muito apreciado pela amplitude das imagens, de fato impressionantes: há câmeras em plongée sobre a fina camada de gelo de um lago congelado, diversas cenas de avalanches, tomadas aéreas e subaquáticas a gosto.

No entanto, seria fácil recair no elogio da dificuldade, ou seja, aplaudir o filme por efetuar uma tarefa muito difícil. Assim como o senso comum prefere as pinturas renascentistas às abstratas, por explicitarem a dificuldade de sua técnica, a filmagem deste documentário ostenta o orçamento confortável, a coprodução entre diversos países, os registros no mundo inteiro, ao longo de diversas estações. Estas imagens são, portanto, raras – outro valor digno do senso comum. Para além de suas belezas isoladas e do gigantismo do empreendimento, resta um projeto que observa a natureza com evidente respeito, mas ainda no estágio inicial de deslumbramento que impede os passos seguintes de articulação de um pensamento. Kossakovsky louva a natureza tanto quanto louva suas próprias peripécias cinematográficas. Existe um caráter vaidoso nesta megalomania, que nos diz mais sobre os humanos por trás da câmera do que sobre a natureza em estado bruto.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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