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Eis que o velho predador sexual encontra uma nova Lolita, e artista genial descobre uma nova musa para chamar de sua. Anna, novo projeto dirigido por Heitor Dhalia, parte de algumas das lutas de poder mais frequentes no cinema, no teatro e na literatura: o professor contra a aluna, o velho contra a nova, o experiente contra a inocente, a malícia contra a pureza. Além de Lolita (1962) e Morte em Veneza (1971), o drama faz referência a outros materiais clássicos: “Um Bonde Chamado Desejo”, “Lady Macbeth” e sobretudo “Hamlet”, todos exemplares em seus jogos de manipulação. Assim, quando o diretor de teatro idoso e respeitado olha de maneira diferente para sua aluna (ela chega atrasada, ela se mostra mais tímida que as demais, revelando rapidamente ser “a escolhida”), sabemos que um relacionamento abusivo se inicia.

A duração do filme é inteiramente ocupada pelas trocas entre ambos – para personagens obsessivos, oferece-se um funcionamento obsessivo. A relação perversa é acentuada pelo fato de que não existe mundo fora dos palcos: a quase integralidade das cenas se passa durante os ensaios, dentro de um teatro fechado, ou em festas onde se propõe apresentações artísticas – ou seja, extensões do palco. Estas pessoas não comem, não têm família, nem passado, não pagam contas, e Anna sequer interage com o espaço silencioso que chama de casa. O mundo só existe no teatro, com personagens-interpretando-personagens, atacando-se através de frases retóricas do tipo “Eu quero ver o seu furacão interno!” e “Não consigo enxergar a sua verdade!”.

Este olhar se aproxima da caricatura do teatro burguês, autoimportante e solene demais, que encontra dificuldade em se inserir numa sociedade mais ampla. Curiosamente, não há público neste filme sobre ensaios intermináveis concebidos como verdadeiras sessões de tortura psicológica. Mesmo que um personagem cite as bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia, satirize as pessoas que bateram panela contra Dilma Rousseff e os defensores das mulheres “recatadas e do lar”, estes elementos soam desconectados em comparação dentro da leitura egoica dos nossos tempos. Em outras palavras, a citação à contemporaneidade apenas ressalta o abismo que separa o “palco sagrado” onde desfilam os personagens do mundo não-artista lá fora.

Anna (Bela Leindecker), a garota que batiza o projeto, torna-se coadjuvante de sua própria história. O ponto de vista não pertence à jovem atriz, uma vez que a direção está apaixonada demais pelas crueldades de Arthur (Boy Olmi) para ficar do lado dela. A câmera prefere observar os dois por um ponto de vista externo, suprimindo passagens importantes que, para a garota, certamente tiveram importância, como o estupro. Talvez Dhalia tenha preferido evitar a representação da violência, porém o descaso com que a montagem passa por este episódio, fundindo-o entre a realidade e o imaginário, beira a irresponsabilidade com um tema de tamanha gravidade. Alguns personagens secundários, quase figurantes, elevam a voz contra o diretor-ditador, apenas para sumirem na cena seguinte. O grupo principal se mantém firme à montagem de Hamlet, ensaio após ensaio, humilhação após humilhação, preparando o espectador para uma inevitável explosão: em algum momento, o jogo precisará ser interrompido.

Ora, mesmo que a trama encontre alguma forma de alívio à Ofélia sofredora, ele jamais se distancia o suficiente do professor, por quem nutre real admiração. Para a pergunta clássica “A genialidade desculpa os comportamentos abusivos?”, a resposta do filme é discreta, como se tamanha crueldade servisse de certo modo a fortalecer estas vítima e torná-las, graças à experiência traumática, melhores atores. Romantiza-se, ainda que discretamente, o valor do sofrimento na arte em busca de uma “verdade”, o que retira o ator do papel de profissional para colocá-lo na posição de mártir pela causa maior das belas artes. Por esta razão, Anna soa bastante datado em seu discurso: ele critica a exploração masculina enquanto ainda aproveita o fetiche sexual da mesma; destrincha o esforço no trabalho do ator para então se tornar condescendente com a precariedade do mesmo.

O roteiro tem consciência de que essas relações de gênero são anacrônicas, mas não consegue se impedir de reproduzi-las. O resultado é um discurso autocondescendente, que demonstra tanto respeito pelo pensamento clássico (das artes e do conservadorismo social) que jamais rompe violentamente com o mesmo. Existe certa reverência, nas luzes cuidadosamente aplicadas durante as cenas de abuso e nas longas cenas de exploração, aos métodos de Arthur com seu elenco. Pela ausência de respiros, de um contraponto, de um mundo externo, apresenta-se esta dinâmica nociva como única forma possível de criação – afinal, esta é a segunda vez que o suposto gênio tenta montar Hamlet, levando mais uma atriz à loucura. Estes homens geniais e abusivos têm a licença para continuar agindo como tais. Entretanto o filme, em seu discurso ambíguo, evita manifestar repúdio em relação a isso.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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