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Sinopse

Ana Clara é uma famosa escritora que vive em conflito com seus próprios contos, uma vez que eles se misturam com sua vida real desde a adolescência. Além dos personagens fictícios que criou, ainda lida com pessoas que não fazem ideia da dimensão em que estão vivendo.

Crítica

Ana Clara (Vanessa Gerbelli) é descrita nesse filme por sua capacidade de criação. Enquanto escritora famosa, criou diversos personagens queridos pelos leitores, e criou situações, cenários, diálogos. Enquanto mãe, criou filhos. Enquanto mulher esquizofrênica, criou amigos imaginários, vozes com as quais conversa de modo mais ou menos harmonioso. Da cabeça de Ana Clara saem suas maiores conquistas e o seu calvário, os mundos controlados por ela e os mundos que a controlam. As criações da protagonista se tornam o verdadeiro tema de Amor Assombrado, uma investigação psicológica pela mente genial e doentia de uma mulher incapaz de separar o real do imaginário.

O diretor Wagner Assis faz com que todos esses fantasmas convivam com a protagonista sem qualquer teor de ameaça ou suspense. As figuras invisíveis ao redor da escritora possuem corpos iguais aos de qualquer pessoal real – fator que não apenas dilui o caráter “mágico” da premissa, aproximando-o do naturalismo, quanto permite que o espectador compartilhe das dúvidas de Ana Clara. Quando ela duvida se sua filha é real, ou somente mais um produto de sua imaginação, o cineasta pretende que a indefinição seja compartilhada pelo espectador. Assim, o ponto de vista é sempre aquele da mulher isolada, cabendo ao espectador enxergar unicamente o que ela também enxerga. O fato de se colocar ao lado dela, limitando-se ao olhar dela, representa uma forma de respeito considerável por parte da direção.

Além disso, Assis demonstra notável ambição no uso de planos-sequência. O filme é construído através de cenas longuíssimas, captadas com estabilizadores de imagem, enquanto os atores destilam seus diálogos numa fluidez típica do jogo teatral. A imagem ininterrupta permite que o diretor construa vários planos dentro do plano – os personagens que entram e saem de cena, em profundidades diferentes do enquadramento – enquanto valoriza o espaço da casa de Ana Clara, essencial para a sensação de claustrofobia, reforça a proximidade com a água e ressalta a condição social privilegiada da escritora. Os planos-sequência também naturalizam o texto maneirista, repleto de frases de efeito de pretensão filosófica.

Os atores carregam com a máxima naturalidade possível frases como “Você nunca parou para pensar nas coisas que são para sempre?”, enunciada no primeiro encontro entre dois jovens. Gerbelli, Guilherme Prates e Carmo Dalla Vecchia fazem o possível para embutir um aspecto corriqueiro no filme que se leva a sério demais em todos os instantes, caminhando a dois passos do humor involuntário. Apesar da insistente trilha sonora (apostando na mistura letal de piano melódico e cordas tristes), de alguns movimentos de câmera menos fluidos e um ou outro problema de som – os diálogos na praia parecem dublados – os atores mantêm a questão da saúde mental num patamar verossímil.

Consequentemente, paira a noção respeitosa de que estamos falando de pessoas inteligentes, cultas (o que vale tanto para Ana Clara quanto para o marido e os amigos imaginários), capazes de proporcionar trocas bem articuladas sobre si próprio e os outros. Para cada escolha questionável de direção (o excesso de cenas de afogamento, a superação brusca da crise da protagonista), Assis emprega outros recursos simples, porém funcionais, como os filtros que tornam o mundo interno da escritora mais saturado do que o pálido mundo real. Amor Assombrado representa uma tentativa rara de proporcionar um cinema adulto e intelectual, cuja textura cênica e ritmo contemplativo buscam dialogar com a plateia avessa às demandas contemporâneas do pop.

Obviamente, o sucesso da empreitada dependerá da capacidade do espectador em acolher diálogos como “Por que é que a gente tem que ter um nome?”, ou “Nem sempre tudo faz sentido. Nem sempre o sentido faz sentido”. Entre o final de cunho religioso, apelando à presença do “verdadeiro criador” e ao otimismo fácil demais, ao menos o projeto busca uma maneira original, e cinematograficamente corajosa, de abordar uma psicopatologia grave, sem recorrer ao vitimismo nem ao julgamento moral. Ao invés de descrever a doença de Ana Clara, o filme prefere mergulhar nela, representando ao espectador a complexa percepção de mundo de uma pessoa que escuta vozes imaginárias. O resultado pode nem sempre soar polido o bastante, porém constitui um passo interessante na trajetória do diretor.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
6
Francisco Russo
5
MÉDIA
5.5

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