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Sinopse

Em 1820, Mary Anning trabalha como paleontóloga num vilarejo à beira-mar. Um de seus clientes viaja a negócios e lhe pede para cuidar de sua esposa, Charlotte, traumatizada pela perda recente do filho. Embora nenhuma das duas busque a convivência a princípio, elas se aproximam e se apaixonam, escondendo o relacionamento dos olhares conservadores.

Crítica

Mary Anning (Kate Winslet) trabalha na escavação de pedras em busca de amonites, ou seja, esqueletos fossilizados. Ela constitui uma das poucas mulheres no início do século XIX a desempenhar esta função, e uma das mais talentosas no cargo, embora a maestria não resulte em fama nem conforto material. O diretor Francis Lee utiliza este símbolo pouco popular em Ammonite para retratar o amor escondido entre esta mulher de meia-idade e a jovem Charlotte (Saoirse Ronan): os fósseis petrificados representam a joia escondida, detectada apenas pelo olhar treinado, fruto de intenso esforço para esculpir e manter. As amonites simbolizam aquilo que fica enterrado sob a superfície, embora a sociedade saiba de sua existência. O autor busca a sensualidade improvável nas pedras, no ato de escavar, de enfiar a mão na lama e acariciar a forma redonda dos objetos. Trata-se de uma liberdade poética interessante, pois nada óbvia – a aproximação do sexo feminino com conchas e elementos marinhos teria sido mais evidente, e também mais fraca. Este recurso permite ao cineasta realizar a mistura entre biografia (Mary realmente existiu) e a ficção (não existe indício concreto de lesbianismo em sua trajetória, apenas o fato de jamais ter se casado com um homem).

Partindo deste cenário, o cineasta oferece um mergulho na psicologia das personagens. Nenhum elemento passível de dedução será explicado em diálogos ou letreiros: Lee se esforça em concretizar o máximo possível de cenas sem falas. Diversas interações entre as mulheres ocorrem por meio de olhares ambíguos, seja de raiva, desprezo, sedução ou paixão. Numa única sequência, Mary observa com deslumbre Charlotte vestida para uma festa, ajuda-a a amarrar os laços do vestido, depois aceita usar perfume pela primeira vez, e em seguida pede desculpas silenciosamente por ter que deixar o recinto – numa troca desprovida de uma palavra sequer. Para as atrizes, o projeto oferece o desafio de manifestar a ampla variedade emocional (o roteiro constitui uma montanha-russa de sentimentos) por meio das expressões, a maneira de balbuciar e caminhar. No papel da paleontóloga amargurada, Winslet adota uma boca mais fechada, de modo que os sons saem pela metade, sinal de uma pessoa embrutecida, com algo a esconder. Em paralelo, seu corpo é rígido, ríspido, e cada olhar carrega a mistura de ódio e cansaço pela vida ingrata. O diretor exige muito de sua atriz bastante técnica, que entrega o prometido na posição de aluna exemplar. Saoirse Ronan, vivendo uma jovem esposa em período de luto, investe num estado catatônico à beira do exagero, equilibrando a dureza de sua colega de cena.

Esta composição provoca a aparência de uma obra inesperadamente fria para um retrato de amor proibido. No entanto, o autor se recusa a enveredar por caminhos novelescos. Esqueça a porta se abrindo para alguém surpreender as duas juntas, ou então o relacionamento sendo exposto em público, tornando-se motivo de fofoca, exigindo sacrifícios etc. O texto esclarece quais personagens estão cientes desta paixão e quais a ignoram, explicitando (novamente, pelo peso dos silêncios) a reação de cada um à proximidade entre Mary e Charlotte. As trilhas sonoras grandiloquentes, as fugas desesperadas pelo mar e o fogo saindo do coração – metáforas utilizadas em Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), com o qual este drama foi comparado em sua estreia – passam longe da contenção de Lee, que prefere deixar o grito preso na garganta. Ao invés de desenvolver a revelação ou descoberta do amor, opta pela manifestação de um acontecimento discreto, exposto em sua integralidade apenas aos olhares cúmplices do público. Em oposição ao fetichismo de Azul é a Cor Mais Quente (2013), as cenas de sexo se mostram tão cruas quanto respeitosas em termos de luz, ângulo e duração.

Ammonite possui uma estética elegante, afeita às pequenas poesias de natureza íntima. Por isso, trabalha inicialmente com uma câmera rígida, em planos fixos, condizente com o ponto de vista dessas mulheres controladas – o trabalho com as pedras beira o registro documental. O cineasta decide se concentrar nas mãos e dedos, seja as unhas encardidas de Mary, aquelas cobertas de luvas para Charlotte, e as vezes em que as mãos se entrelaçam. A fotografia observa caranguejos nas pedras, joaninhas passeando por quadros e o xixi nas pedras para sugerir o contato com a natureza terrena e humana, além da intimidade crescente entre ambas. Aos poucos, a câmera se torna mais móvel, permitindo movimentos amplos para acompanhar as personagens se libertando das amarras sociais. Avesso a romantizar as paisagens bucólicas à beira-mar, o diretor de fotografia Stéphane Fontaine investe nos dias brancos e pouco convidativos, em conjunção com interiores modestos. O tempo se passa de modo quase invisível graças à montagem discreta, saltando dias e semanas sem avisar o espectador. Aborda-se a cronologia do sentimento amoroso, não aquela dos fatos: pouco importa o que de fato ocorreu entre Mary e Elizabeth (Fiona Shaw) no passado, ou as reais atividades de Roderick (James McArdle) durante sua ausência. O filme se preocupa apenas com aquilo que as mulheres podem ver e desejam ver.

A principal ressalva a partir desta narrativa diz respeito à sua previsibilidade: anunciando com antecedência o romance iminente, cabe somente esperar para que as protagonistas iniciem o relacionamento. A concretização do amor demora a tomar conta do roteiro, que elabora microscopicamente a aproximação entre as heroínas. No entanto, o lento caminho rumo à viabilização do desejo erótico permite ao drama evitar o senso do espetáculo: a paixão entre Mary e Charlotte jamais carrega um aspecto de escândalo, de surpresa ou de grande explosão interrompendo a vida cotidiana. Pelo contrário, são obrigadas a inserir o vínculo secreto dentro de seus afazeres. Para o cinema de idealização romântica, a prática do sentimento permite que o mundo se interrompa e os personagens dediquem toda a sua energia um ao outro. Ora, neste caso, às exigências cotidianas se misturam amargamente ao destino de ambas. Lee oferece a experiência rara de um romance naturalista e austero, preocupado em representar o amor através de símbolos e palavras caladas (vide o terço final e a cena de conclusão). Esta não é a proposta de exposição de um vínculo secreto, mas da percepção de uma beleza invisível a olho nu. A exemplo de sua protagonista, o diretor escava com carinho um terreno ardiloso, procurando a pedra preciosa cujo valor passa despercebido pelos olhos da sociedade.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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