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Sinopse

Alex, Fagner e Diógenes são três amigos que formam um laço familiar independente da ligação sanguínea. Ao se mudarem juntos para uma casa, o trio de rapazes dão apoio emocional uns aos outros na tentativa de, através de sua união, superar traumas vividos no passado e seguir em frente na vida adulta.

Crítica

O filme explora o termo “ambiente familiar” em seus dois sentidos imediatos: primeiro, a noção de um núcleo marcado pela família, pelas relações entre pais e filhos, entre maridos e esposas; e segundo, a noção de um espaço comum, facilmente reconhecível. O projeto lida, portanto, com cenários cristalizados na formação do indivíduo (a casa da infância, o quintal das brincadeiras) e com figuras arquetípicas da família patriarcal: o pai embriagado e agressivo, a mãe carinhosa, porém submissa, os filhos numerosos, as avós/tias religiosas, a “ovelha negra” que não se adequa às regras sociais etc.

Por um lado, o diretor Torquato Joel pretende seguir a cartilha descritiva do realismo social, investigando de que modo esta formação rígida afeta a vida de três amigos homossexuais na fase adulta. Por outro lado, ele despreza o realismo em prol de uma narrativa simbólica, repleta de imagens que não necessariamente se conectam com o conflito anterior ou posterior, construídas através da linguagem dos sonhos e da poesia. Em outras palavras, a secura da infância pobre, dos maus-tratos e do abandono parental se confronta com imagens multicoloridas, narrações sussurrantes sobre o amor condicional e filtros simulando algo como o líquido amniótico.

A pluralidade de registros resulta numa abordagem certamente ousada, sem medo de inventar a partir de poucos recursos. No entanto, ainda que diversas cenas impressionem em si, elas proporcionam uma experiência pouco coesa, para não dizer um tanto caótica na orquestração de narrativa e montagem. As cenas no presente são filmadas em scope, enquanto a infância se espreme na tela mais próxima do quadrado; alguns momentos são naturalistas (a interação dos colegas no apartamento), enquanto outros beiram o sonho, ou pesadelo, com fortes cores amarelas, azuis e verdes dominando os cenários. O som salta do registro imediato dos diálogos à narração desconectada da imagem, até a curiosa cena em que a imagem, próxima de Marcélia Cartaxo, registra o som de uma briga como se ela estivesse a quilômetros de distância.

Enquanto isso, os enquadramentos vão do plano de conjunto frontal aos plongés, do realismo aos múltiplos filtros, com direito à impressionante inserção de uma cena animada – impressionante, diga-se, tanto pela qualidade da animação quanto pela estranheza daquele fragmento dentro da obra, que não parece se comunicar com nada que o precede ou sucede. Talvez haja uma vontade tão grande de se livrar de amarras da linearidade e do cinema narrativo que as cenas sejam pensadas como núcleos livres, independentes, ao invés de uma jornada única. Resta a impressão de um projeto dotado de propostas em excesso, um tanto impulsivo em suas escolhas, e carente da figura do “produtor” nuclear – compreendido como aquele capaz de observar o conjunto com distanciamento de modo a podar eventuais excessos e arestas para atingir uma obra mais polida.

Deste modo, a trajetória dos protagonistas perde sua força. Torna-se mais difícil ao espectador compreender exatamente o grau do relacionamento entre os rapazes, e estabelecer qual deles pertencia a cada infância, ou ainda de que maneira seus caminhos se cruzam. Há tantas bifurcações visuais e narrativas que a construção de Diógenes, Fagner e Alex se torna bastante prejudicada, até por não existir um ponto de vista único do trio – ora acompanhamos a narrativa pelo olhar deles enquanto adultos e crianças, ora seguimos as cenas-esquetes de um ponto de vista externo e onisciente. Temas muito importantes como a influência da religiosidade nas novas configurações de família, ou da homossexualidade no Brasil contemporâneo – especialmente no Nordeste – se diluem dentro de cenas que chamam mais atenção às suas formas, cores e texturas do que ao material humano retratado.

O paraibano Ambiente Familiar se conclui como uma válida incursão pelo cinema simbólico, em certo parentesco com os trabalhos de Frederico Machado no Maranhão. No entanto, ao contrário deste último, o projeto de Joel não busca a melhor forma para representar o conteúdo em questão, efetuando provavelmente o caminho oposto: encontrar a narrativa mais adequada para rechear uma iniciativa estética preconcebida. Em paralelo, não adequa a ambição visual aos recursos de produção disponíveis – os cômodos multicoloridos se ressentem de um trabalho mais complexo de iluminação, por exemplo. Pelo menos, diante do desejo palpável de criação e pela visceralidade da poesia, Joel desperta curiosidade para seus próximos projetos na direção de longas-metragens.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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