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Em um resgate das memórias do diretor e poeta argentino Fernando Birri, que faleceu aos 92 anos em dezembro de 2017, imagens de um frágil VHS mostram o registro de quando ele rodou seu país atrás de histórias sobre Che Guevara. Narra e promove reflexão sobre a importância das utopias naquele tempo.

Crítica

A palavra “utopia” surge imediata e espontaneamente quando se trata do cineasta argentino Fernando Birri, personagem central deste Amarra Seu Arado a uma Estrela. Conhecido como o “pai do novo cinema latino-americano”, o também teórico, escritor, poeta e pintor – falecido em 2017, aos 92 anos - recebeu de muitos, ainda, outra alcunha, justamente a de “construtor de utopias”. Um reflexo de sua luta incessante pela construção de um cinema latino-americano forte e unificado, e que, preservando sua pluralidade, se impusesse não apenas artisticamente, mas também como ferramenta de mudança da realidade política e social. Um sonho que teve início nos anos 50, com sua formação no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, quando teve contato com o neorrealismo italiano, passando pela fundação do Instituto de Cinema de Santa Fe, sua cidade natal na Argentina, e da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, Cuba, em 1986.

Tal busca se estende também à temática social e utópica que permeia a obra de Birri, na qual se destacam títulos como Tire dié (1960), Los Inundados (1962), Org (1979) e o documentário Mi hijo el Che (1985). O interesse particular pela figura de Che Guevara seria retomado em um novo trabalho documental, Che: Muerte de la Utopia? (1999), realizado em razão do trigésimo aniversário da morte do revolucionário, proporcionando o retorno de Birri à Argentina após mais um período de exílio. Os bastidores da produção foram acompanhados, à época, pela cineasta Carmen Guarini que, duas décadas depois, decidiu recuperar esse registro informal e utilizá-lo como base para a concepção de um longa de cunho bastante íntimo, ancorado numa estrutura simples: dois atos compostos basicamente da colagem de fragmentos das filmagens feitas em 1997 e um último trazendo imagens de encontros posteriores com seu amigo e mestre.

Se valendo da inserção de trechos de narração em off, feitas pela própria realizadora, e de correspondências trocadas com Birri, o documentário de Guarini assume abertamente o tom pessoal de homenagem e reverência, sem, contudo, se desviar a uma mitificação de seu protagonista. Ainda que a persona de Birri, com sua longa barba branca, seu poder de oratória envolvente e personalidade cativante, se preste a criação de uma figura profética, Guarini direciona seus esforços a retratar o lado humano que se funde ao gênio artístico inquieto. Tendo em vista esse intuito, as imagens de qualidade quase caseira, que não escondem sua temporalidade, se mostram ideais, ganhando especial força nos momentos coletivos de descontração, como as refeições com familiares e amigos reunidos à mesa. É dessas conversas sobre assuntos cotidianos que surgem devaneios reveladores, como toda a elaboração hipotética da cerimônia funeral de Birri.

A bem-humorada sequência, na qual o cineasta imagina um cortejo festivo regado à música, e que inclui a ideia de misturar suas cinzas à cerveja para que seus convidados ilustres – entre eles os brasileiros Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos – bebam, sintetiza o espírito anárquico e inventivo do protagonista, estreitando sua relação com espectador. Guarini busca mesclar esse viés humano ao aprofundamento na questão filosófica central da morte da utopia, presente no registro do processo criativo de Birri, como os diálogos preparatórios com os entrevistados de seu documentário. Mesmo nesses momentos, a diretora opta pela informalidade, focando nas discussões que antecedem a entrevistas em si, dando o mesmo peso às palavras de nomes célebres como o escritor peruano Mario Vargas Llosa, e de figuras anônimas, como um humilde trabalhador rural.

O debate acerca do conceito de utopia, em determinados momentos, pode soar repetitivo, mas é fundamental ao trabalho tanto de Birri quanto de Guarini. Pois, ainda que a resposta definitiva – como mostra a divertida cena em que o mestre argentino contesta a definição da palavra no dicionário – não seja encontrada, o que Amarra Seu Arado a uma Estrela deixa claro é a necessidade da existência de utopias independentemente de seus significados. Ou seja, não apenas no âmbito político, como um sistema de governo, uma organização social, mas na esfera simbólica, da necessidade de ter sonhos, objetivos, de almejar mudanças. Algo que Birri encarnou não apenas no discurso, mas na prática, até seus últimos momentos de vida, e que Guarini faz questão de ressaltar ao entregar ao amigo uma câmera GoPro para que ele registre seu dia a dia.

Fisicamente fragilizado, mas ainda completamente lúcido, Birri filma seus quadros, suas plantas e seus prêmios como uma criança que acaba de ganhar um novo brinquedo, expondo um interesse inabalável pela criação, pela experimentação. Esse frescor emana também no momento em que se entrega a uma alegria, de fato, infantil, se divertindo com um brinquedo eletrônico, um fantasma dançante, que, intencionalmente ou não, termina por representar seu próprio espírito. Um espírito desbravador que mantém viva a busca pela utopia, essa “memória de um futuro não vivido”, como o próprio descreve.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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