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Sinopse

Na Catalunha, uma grande família vive há gerações do plantio e colheita de frutas. Um dia, descobrem que a falta de assinatura num documento, décadas atrás, implica na perda do território para novos proprietários. Até o fim do verão, eles são obrigados a ceder as terras a um grupo que pretende derrubar as árvores e instalar painéis solares. Pai, mãe, filhos, tios, primos, cunhados e avô reagem, cada um à sua maneira, ao último verão juntos na propriedade.

Crítica

Existem cerca de vinte personagens principais em Alcarràs (2022). Pai, mãe, filhos, sobrinhos, tias, primos, avós e colegas de trabalho compõem este retrato amplo da vida de agricultores na cidade-título, confrontando-se ao choque da modernidade. Embora tenham plantado pêssegos há décadas, descobrem que um imbróglio administrativo transmite o título da propriedade a outra família. Os novos ocupantes pretendem destruir as árvores frutíferas e instalar painéis solares no lugar. O mosaico reage de maneiras distintas ao fim de uma era: o pai se enfurece, a mãe finge que nada aconteceu, o tio se une aos algozes na busca de emprego, os adolescentes tentam chamar a atenção para si, o filho mais velho decide provar seu valor ao pai. Partindo de um contexto de estabilidade, a diretora e roteirista Carla Simón planta uma única faísca para então observar como diferentes gêneros, classes sociais e gerações reagem ao problema. Apesar da aparência discreta de um “drama de personagens”, existe notável pretensão socioeconômica neste longa-metragem de essência clássica. Por que privilegiar um herói quando a comunidade pode ocupar, de maneira indistinta, a posição de protagonista? Através desta estrutura, a cineasta também afirma uma política pessoal, dispensando a hierarquia entre os familiares. Crianças e adultos possuem vozes iguais nesta jornada.

Em termos de linguagem cinematográfica, o drama aposta na estrutura conhecida do realismo social, que acompanha os múltiplos indivíduos com uma câmera na mão, livre e fluida, atenta a cada movimento. Simón concebe imagens com cinco, seis, dez pessoas no enquadramento, e solicita à diretora de fotografia Daniela Cajías que siga as corridas das crianças pelas planícies, as implicâncias entre adultos ao fundo, as brincadeiras do grupo na piscina, as vendas e trocas de dinheiro na feira. Há muitas atividades acontecendo simultaneamente, embora não se traduzam em conflito: o único dilema digno deste nome se encontra na perda da casa familiar. As equipes criativas efetuam um trabalho impecável para que esta dinâmica funcione, sem se transformar num caos completo: a direção de fotografia sempre sabe para onde olhar, dançando junto ao corpo dos atores enquanto a montagem efetua uma quantidade impensável de cortes invisíveis, de uma mão infantil a um rosto adulto, de um cesto de pêssegos a um coelho morto pelo chão. Desde a escolha da textura granulada, até os tons quentes de inverno, e as roupas discretas da família de classe-média, a direção de arte, montagem, fotografia e som se dicam com humildade à história central. Nem eles, nem a diretora demonstram alguma forma de vaidade cinematográfica, exibindo proezas técnicas. Nesta obra, o humanismo se encontra acima do espetáculo.

No entanto, cabe questionar a relevância deste discurso na contemporaneidade. O cinema já ofereceu muitas dezenas, ou centenas, de obras de teor semelhante, inclusive na produção espanhola das últimas décadas. O olhar onisciente, buscando estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sem adotar um ponto de vista específico, deixou de ser considerado uma virtude política para se assemelhar, em alguns casos, ao conformismo ou falta de posicionamento. Ora, é evidente que a artista defende a causa dos trabalhadores contra os empresários gananciosos que lhes roubam as terras. Em contrapartida, a linguagem descritiva, que acompanha os passos dia a dia sem necessariamente buscar algum ponto de ruptura ou transformação, parece se estagnar na nobreza de suas intenções. As evidentes qualidades de Alcarràs não ocultam a ambição limitada na criação de metáforas, atritos ou símbolos potentes, capazes de canalizar estas angústias. Em outras palavras, falta poesia ao filme belo, porém comportado, incapaz de provocar o espectador para além da lamentação de um modo de vida que se degrada. Alice Rohrwacher tem retratado um recorte equivalente de personagens, porém incorporando a fantasia capaz de representar uma estrutura política em desequilíbrio. O olhar, com Simón, se faz plácido, linear, inabalável. A cena de conclusão se revela tão forte, imageticamente, quanto fatalista. 

Ao menos, resta ao espectador o prazer das cenas de conjunto, de testemunhar um grupo de atores competentes que jamais se sobressaem, em qualidade, aos demais. O espectador poderá identificar com um ou mais membros de sua família naquele grupo barulhento a princípio, e melancólico na reta final. O projeto evita o sentimentalismo fácil, enquanto analisa diferentes estratégias de retaliação à ameaça do capital. Além disso, domina o “fazer real”, apresentando agricultores dignos de crença pela maneira como colhem as frutas, manobram empilhadeiras e controlam pás em repetidas cenas. O resultado remete aos dramas propostos por Carlos Saura ou Victor Erice nos anos 1970, nos quais a inocência das crianças se contrastava à rotina amarga dos adultos, com os adolescentes servindo de ponte de transição para a descoberta dos arranjos sociais. A comparação com estes grandes autores pode ser positiva, exceto para o espectador em busca de formas novas, e arrojadas, de direção. Na mostra competitiva em Berlim, outros filmes de jovens cineastas mulheres, a exemplo de Robe of Gems e Before, Now & Then apresentaram qualidades e fragilidades, porém ostentaram notável ambição de gêneros e estética. Alcarràs soa como uma obra “pronta”, polida e profissional, que os festivais gostam de recompensar por seu aspecto consensual — a Espanha já teria neste longa-metragem um ótimo concorrente ao Oscar 2023. Em contrapartida, falta descobrir o que Simón pode oferecer em termos de perspectiva autoral e particular do mundo à sua volta. 

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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